Aos 44

Agora a vista do escritório dá para a Baía de Guanabara, mas o que vejo durante todo o dia são aviões  que sobem e descem como movimentos de uma respiração longa, suspiros profundos – inspira, expira. Convite tentador para a mente dispersiva decolar para outro lugar que não essa trincheira de planilhas e inseguranças. Mas ando tão sem ambição que o meu sofá novo seria suficiente: ele estica, aumenta, parece que abraça a gente – tinha que ser presente de mãe, claro. No verão talvez ele esquente, mas o verão parece ainda distante, outra vida, aquela suada e pegajosa que, em compensação, tem o carnaval, esse refresco de realidade na ilusão do dia a dia. O professor da academia disse duas vezes “você é uma mulher forte”: na primeira como se estivesse dizendo uma obviedade; e algo na minha expressão deve tê-lo advertido porque na segunda vez ele falou com mais convicção ainda, como se quisesse me impedir de duvidar. Espero que ele saiba do que fala, porque eu não faço menor ideia. Com os 45 se aproximando não consigo evitar a metáfora do futebol, embora ela não me favoreça: minha atuação até aqui está mais pra pífia do que para consagradora. Com alguma condescendência dirão que fui esforçada, mas sem inspiração.  Gostaria de fazer um gol ou pelo menos um lance de perigo, uma jogada vistosa para chegar ao segundo tempo com moral. No entanto, tudo indica que sairei abatida para um intervalo que não há: a bola continua rolando, desistir não é uma opção e melhorar, uma necessidade. No joguinho do celular perco a todo instante e ele vaticina: “Você falhou!” Respondo mentalmente: “Você nem imagina o quanto!”.

Na outra vez que ensaiei escrever desse jeito, que não sei explicar exatamente qual é, me dei conta depois que minha inspiração vinha de Adélia Prado.  Claro que eu nunca vou escrever nem lista de supermercado como ela, mas foi a primeira que eu vi misturar assim as receitas, fazendo uma poesia cheia de prosa e vice-versa. “Com licença poética” foi uma espécie de RG feminino e feminista, mas a epifania veio com “Solte os cachorros”. Eu tinha 20 anos quando li esse livro e tive uma compreensão antecipada de dores que eu ainda não havia sentido, mas soube que viriam.  Dói do mesmo jeito, mas pelo menos não fui pega de surpresa.

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(Njideka Akunyili Nwantinti [Detail], 2012)

 

7 Respostas

  1. 44 é tão pouco, eu aindA nem tinha vivido uma nova linda história de amor, que me pegaria de surpresa. Beijo!

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  2. Caraca, que texto! Que mulher!

    Ô, querida, obrigada. Que saudade de você.
    Beijim,
    Helê

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  3. Pra vc ver, ser forte ou fraco, inspiração ou fracasso, depende totalmente do ponto de vista. Ninguém é juiz (ou técnico) mais rígido conosco do que nós mesmos, e se eu pudesse dar um conselho (hahaha, piada interna) seria: larga esse chicote, meu amor, vc bate um bolão, sempre. Nem sempre a gente acerta os chutes, até Zico já perdeu um penalti. Se vc pudesse assistir ao seu próprio vt, talvez visse melhor os (muitos) momentos de brilho que nós também vemos… É um prazer, um orgulho e uma alegria ser do mesmo time que vc!

    Dedear, sua linda, seu comentário me fez chorar e rir (ótima piada interna), como é de seu feitio: cubrir todas as bases. Obrigada pela torcida e pelas tabelas ;-)
    Beijoca,
    Helê

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  4. Que lindo isso! <3

    Obrigada, Ju; bpm te ver por aqui!
    Beijoca,
    Helê

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  5. Minha jogadora predileta, me inspiro em você pro jogo da vida!

    Obrigada pela torcida, Comadre!
    Beijo grande,
    H.

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  6. Entendo demais o sentimento que move esse texto. Mas discordo de um monte de coisas aí. Veja, é fácil, pra quem tá de fora e já nos primeiros minutos da etapa complementar dizer isso. Mas cara, você tá fazendo um partidaço!

    O sentimento que move, Ana, that’s all about…De todo modo, muito obrigada.
    Beijoca,
    Helê

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  7. ia deixar uma estrela, mas teria que ser uma agridoce.

    Estrela com sabor também vale, Dani. ;-)
    Bj,
    H.

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