Depois do fim

Mas talvez o fim de um amor seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz e outra que desfaz.

 Contardo Caligaris, “Por que acaba um casal?”

No outro post enumerei sentimentos tristes, dolorosos e mesquinhos presentes nas canções de separação para sublinhar a diferença entre essas músicas – a esmagadora maioria – e umas poucas que falam do fim com ternura, alguma saudade, respeito, de uma maneira positiva, amorosa até.  Feitas de versos raros em que os relacionamentos, vistos em perspectiva e com algum distanciamento, são retratados como o que foram e representaram, e não pelo modo como terminaram. Nessas músicas o fim aparece como um ponto parágrafo, final de capítulo, mas não da trajetória de um amor que encontra novas formas de sobreviver ou transmutar-se. Nelas o fim conclui uma estrofe, mas não a canção, que ainda permanece tocando na memória afetiva como relíquia bem-vinda.

O sempre visceral Gonzaguinha escreveu sobre o amor em diferentes estágios, inclusive os mais difíceis – ninguém a cantou tão bem uma crise como ele em “Grito de alerta” (São frases perdidas num mundo de gritos e gestos/num jogo de culpa que faz tanto mal). Com a mesma entrega e precisão ele compôs “Feliz”, um título inusitado para cantar um amor que já não existe mais, que desperta “saudade da boa”. A melodia não me agrada tanto quando a letra, que evoca belas imagens:

“Duas vidas que abrem

Não acabam com a luz

São pequenas estrelas

Que correm no céu

Trajetórias opostas

Sem jamais deixar de se olhar (…)

É a certeza da eterna presença

Da vida que foi

Na vida que vai

Para Gonzaguinha a possibilidade de felicidade era privilégio de quem “bem viveu o amor”, ainda que não fique claro o que isso significa. Já Tunai recorre ao Senhor da Razão para poder avaliar, de maneira justa, a relação terminada. Ele evoca algo da mágica da qual fala Caligaris, um lado oculto do amor que só se dá a (re) conhecer com o tempo. “Eternamente” declara com franqueza um amor que, embora já não seja, para sempre será, sem que soe com um pedido de reatamento. A gravação de Gal Costa é que mais me emociona:

Só mesmo o tempo
Pode revelar o lado oculto das paixões
O que se foi
E o que não passará
Inesquecíveis sensações
Que sempre vão ficar
Pra nos fazer lembrar
Dos sonhos, beijos
Tantos momentos bons (…)
Vou ter sempre você comigo
Nosso amor eu canto e cantarei
Você é tudo que eu amei na vida
Nunca vou te esquecer
(via desvencilhar)

Agora, a escolha mais óbvia dessa lista: “Drão”, do Gil, sobre a qual nem se deveria falar, apenas e sempre ouvir. Considero uma das mais belas canções de amor já escrita, mesmo que fale sobre o término de um casamento de 17 anos e 3 filhos. Ou por isso mesmo. Pesquisando para o post, encontrei essa interessante entrevista de Sandra Gadelha, que fala sobre o impacto da música em sua vida. A maneira transcendental e simples como Gil descreve a mutação do amor em grão, trigo, e pão dispensa comentários. E, ao contrário da canção de Tunai, percebe-se que não foi escrita posteriormente, com as dores já cicatrizadas, mas no calor dos acontecimentos, imediatamente após a partida, oferecendo conforto e consolo sem arrogância, com ternura e carinho. Dialético e baiano toda vida, Gil afirma a morte ao mesmo tempo em que desafia “quem poderá fazer aquele amor morrer?”, sabendo que o sentimento está acima e perpetua-se a despeito deles. Meus versos favoritos são “não há o que perdoar – por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”, que contém mais sabedoria do que sou capaz de absorver.

Drão

Não pense na separação

Não despedace o coração

O verdadeiro amor é vão

Estende-se infinito

Imenso monolito

Nossa arquitetura

Quem poderá fazer

Aquele amor morrer

Nossa caminhadura

Cama de tatame

Pela vida afora

Mas a canção que me deu a ideia para o post e me levou a procurar por outras semelhantes é “I wish you love”, sobre a qual já contei aqui como descobri. Na versão americana ela sofreu uma mudança significativa, que fez com que pudesse se enquadrar no grupo aqui formado. A canção original, “Que reste-t-il de nous amour?”, expressa desde o título a melancolia típica de alguém que, nostálgico, procura o amor perdido em fotos e flores guardadas entre páginas de livro. Já a letra feita por Albert A. Beach é uma minuciosa descrição daquilo que preguiçosamente sintetizamos ao desejar a alguém “tudo de bom”. Com o “agravante” de que quem deseja está de coração partido. A delicadeza da letra e da música, o cuidado em desejar o bem em detalhes, culminando com o maior deles, um novo amor, tudo isso me comove profundamente nessa canção generosa e gentil.

I wish you bluebirds in the spring

To give your heart a song to sing

And than a kiss

But more than this

I wish you love

 

I wish you shelter from the storm

A cozy fire to keep you warm

And most of all

When snowflakes fall

I wish you love

(via wonderlandcode831)

Um bom desfecho talvez esteja entre os maiores desafios de uma relação (que são muitos). Não por acaso, temos aqui um número reduzido de “canções de final feliz”; raros são os casais que conseguem atravessar o oceano de ressentimento e frustração em que se mergulha numa separação. Talvez  quando pudermos aceitar o fim como parte do ciclo – e também de um mistério – , possamos amar mais e melhor. E então haverá mais canções lembrando que, quando vivido em sua plenitude, o amor não acaba quando termina, mas permanece em nós e além.

Helê

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Louca Esperança

Estava eu placidamente curtindo meu feriado quando, já bem à noite, uma amiga me perguntou se eu queria ir com ela ver o Théâtre du Soleil no dia seguinte, pois ela estava com um convite sobrando. \o/
Claro que não dá para dizer “não” a  uma oportunidade como esta. Não foi muito fácil a logística – mesmo saindo mais cedo do trabalho, quase não chegamos a tempo, pois o espetáculo foi encenado no HSBC Arena, a 35 km de distância do Centro da cidade – valeu a pena demais da conta.
Confesso que estava meio em dúvida se valia tanto sacrifício para, afinal, ver um espetáculo de teatro, sendo que temos tantas boas produções por aqui. Mas O Théâtre du Soleil é algo muito diferente de tudo o que já vi.
Trata-se de um grupo que tem como proposta fazer teatro popular de qualidade, usando, para isso, diferentes formas de expressão. A diretora da companhia, Ariane Mnouchkine, é considerada um dos grandes nomes da vanguarda teatral contemporânea; todos os membros recebem a mesma remuneração; os espetáculos em geral são montados em ginásios ou grandes espaços. É um verdadeiro coletivo teatral, e não apenas um elenco. Tudo é muito diferente e muito especial.
O espetáculo, “Os Náufragos da Louca Esperança”, nos transporta de um plano para outro sem que nos demos conta. A história da peça é sobre um grupo de artistas e trabalhadores socialistas nos momentos que antecedem o início da Primeira Guerra (1914), produzindo um filme mudo, no sótão de um restaurante, sobre uma viagem da navio aos confins da Terra do Fogo. Por conta disso, toda a narrativa se dá em dupla camada, ou seja: atores atuando, caracterizados como o personagem e depois recaracterizados como o personagem que seu personagem interpreta. No momento em que o diretor grita: “tourne la manivelle”, e a cinegrafista começa a filmar… de repente esquecemos que estamos no teatro, e parece que estamos vendo um filme mudo. É de uma grandiosidade impressionante. De tempos em tempos, o diretor grita: “saiam da frente”, ou “movam o cenário para trás”… e a gente lembra que é uma peça sobre uma filmagem, e não um filme. Simplesmente incrível.
A primeira vez que ouvi falar em Ariane e seu Théâtre foi há mais de vinte anos, nas minhas aulas de francês. Nunca poderia imaginar que teria a oportunidade de assisti-los, menos ainda que eles viriam à minha cidade. Mas nada me preparou para o arrebatamento que vivi ontem. Eu e minha amiga saímos do espetáculo – que tem nada menos que quatro horas de duração – alimentadas de arte.*
-Monix-
* Notem que quando digo “alimentadas de arte”, é tipo literalmente. Saímos correndo do Centro e não deu tempo de comer nada. Chegamos em cima da hora, o intervalo foi curtíssimo, as filas eram enormes, ou seja, fui jantar depois da uma da manhã. O que para uma taurina é um problemão, gente.
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