Olimpíada, ainda

Para Monix foi como se ela estivesse viajando; eu achei que parecia carnaval (só que mais limpo). Partimos de referências diferentes, nosostras, mas atingimos um estado semelhante: a satisfação de ter vivido um momento histórico. De um jeito ou de outro, as Olimpíadas foram um Rio (novo) que passou nas nossas vidas. E eu, confesso, me deixei levar.

Falando nele: Paulinho da Viola na cerimônia de abertura foi um golpe de mestre,  comissão de frente que deslumbra e ganha a arquibancada. Paulinho cantando o Hino Nacional me fez depor as armas e amoleceu meu coração peludo; emoção diferente mas igualmente acachapante foi ouvir o mesmo hino cantado por crianças ao som de atabaques, na cerimônia de encerramento. Orgulho, emoção. O toque tem um nome e é dirigido a um Orixá (que eu não vou citar por respeito, para não correr o risco de errar); mas é preciso dizer que foi um toque religioso, de uma parte de nossa cultura que tem sido sistematicamente atacada. A cerimônia de encerramento, aliás, foi bem negra e nordestina, como se, depois de dizer como nos formamos, na abertura, finalmente apresentássemos quem nos tornamos, na despedida.

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Talvez a imagem do tsunami seja mais fiel que a do rio, porque antes as águas recuaram: estávamos entre a indiferença e o pessimismo. Depois, com o início das provas e as demais atrações – shows gratuitos, novos espaços da cidade, ruas cheias – fomos inundados pela empolgação; atônitos, tínhamos que decidir entre programações na rua e jogos para assistir em casa. Lembrei, com algum atraso, do que é uma Olimpíada: o maior evento do mundo em vários aspectos; também um dos mais antigos rituais da humanidade, a despeito de todas as mudanças dos rituais e da humanidade.

A diferença é que na Rio 2016 o Brasil também estava em disputa: seus signos e significados: o que é, afinal, o Brasil; do que é feito, a quem pertence, o que quer, como se mostra, quem o merece. E essa disputa inconclusa ultrapassa as cerimônias oficiais: acontece também na torcida e nas avaliações sobre ela; no que a gente chama de zuêra e que diz muito sobre como nos pensamos e vemos o mundo; nos zilhões de posts e tweets  sobre o tema, essa produção de conteúdo em massa mediada por algorítimos que desconhecemos. De um modo paradoxal, as olimpíadas foram um alívio na nossa miséria política atual mas, ao mesmo tempo e de outro jeito,  continuamos fazendo política e discutindo o Brasil.

DSC_2198“A olimpíada é uma vertigem. Um dia de jogos vale por mil” – que o diga a Luciana Nepomuceno, nossa guia oficial :-) . E é isso elevado à 10ª potência em tempos digitais. Hoje já parece tarde para falar sobre o assunto, as coisas se sucederam tão vertiginosamente que eu me pergunto quem lembra do choro do Djokovic, de partir o coração. Ou dos treinadores da luta olímpica que tiraram a roupa em protesto contra a decisão dos juízes – cena inusitada que passou quase despercebida, num dia de ouro no vôlei e cerimônia de encerramento. 

Eu, que não comprei ingresso algum, assisti ao pólo aquático, à final do futebol feminino e ao último dia do atletismo. Porque quem tem padrinho não morre pagão, já diz Dona Mamãe. E aqui é o Rio de Janeiro: volta e meia aparece um amigo que fortalece. No pólo vivi pela 1ª vez a experiência de participar de uma olimpíada, ouvir os hinos de outros países  e ver uma partida sem entender bem como se joga. E,  last but never least, com o bônus de ver ao vivo os corpos maravilhosos dos jogadores de pólo. No Maraca tive o prazer de reunir uma torcida feminina e feminista, minha filha included, e ver de perto a alegria de quem ganha uma medalha de ouro. No Engenhão (excessiva e desnecessariamente militarizado),  a glória foi ver o Bolt receber a última medalha olímpica da carreira dele. Eu tava longe pra cacete, mas a energia e reverência do estádio não deixaram dúvida de que aquele cara lá longe era Usain Bolt .

Uma de suas qualidades, pra mim, está em quebrar esse fetiche pela superação e pelo drama que a imprensa esportiva possui. Tem isso, lógico, mas pra mim está implícito no esporte, sobretudo o de elite. E os jornalistas usam sublinhado, itálico e negrito ao mesmo tempo para destacar o sofrimento, e tome musiquinha triste. O Bolt detona um pouco esse frisson pela dor; ele valoriza a glória e a vitória, e nessa hora goza, goza gostoso cada minuto, saboreia o prazer de sua conquista sem falsa humildade. E brinca e dança, resgatando o caráter lúdico do esporte, soterrado pelos incontáveis interesses envolvidos na atividade.

 

 

Imagem de Helena Costa

Sob o olhar de Belini

Falando em jornalismo, a mídia comprou cedo essa história de jogos da diversidade porque essa pauta já estava dada por parte da sociedade e dos movimentos sociais, vamocombiná. E o capetalismo, matreiro que só, rapidamente se apropria de qualquer coisa pra lucrar. Eu aqui acho que, mais que pedidos públicos de casamento, o que demostra que, de fato, vivemos tempos mais tolerantes, é que o choro do Djoko tenha significado apenas a sua decepção e nada mais; que as cenas de afeto e carinho explícito entre os jogadores da seleção de vôlei não tenham causado mais que admiração. Já foi bem diferente, rapeize, cês nem fazem ideia.

Outra coisa: reconheci vários atletas de edições passadas trabalhando como comentaristas, técnicos, e até mesmo entre os cartolas – cf. Bernard do vôlei, gordo, careca e orgulhoso como convém a um membro do COI. E fiz o exercício inverso, de olhar para os atletas de hoje e imaginar que papeis desempenharão nos próximos jogos, de que lado estarão e o que isso diz ou não sobre eles.  Pensando bem, é mais ou menos como na ‘vida real’, com aqueles colegas de colégio que você encontra no facebook 20 anos depois, não? 

Pra encerrar (porque todo carnaval tem seu fim), eu, que falei contra o fetiche da superação, tenho que admitir que o que mais me comoveu nos jogos olímpicos foi a quantidade de medalha ganha pelos brasileiros pretos e pobres. Uma das imagens mais marcantes foi Elza Soares no palco da Praça Mauá repetindo como um grito de guerra: “Rafaela Silva! Rafaela Silva! Rafaela Silva!”. À Rafaela – que eu vi no Parque Olímpico e fiquei tão emocionada que sequer puxei o celular pra foto -, juntaram-se Maicon Andrade, Isaquias Cordeiro, Robson Conceição, Serginho: heróis improváveis de um país acostumado a Graels e Sheidts no pódio. Vocês são os meus ídolos, e eu me emociono só de escrever seus nomes aqui. Não quis saber detalhes das histórias de dificuldades que apenas entreouvi; bastam seus sobrenomes e a cor da pele. Na disputa pelo Brasil, me representam e têm a minha torcida. Que para os que virão, não precise ser tão mais difícil.

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Helê

 

 

6 Respostas

  1. Lindo texto. Tanta humanidade e informacao! Eu sempre penso comigo mesma: quando teremos Duas Fridas em papel, em pequena edicao pra gente poder cheirar o gosto de suas palavras impressas…?

    Ah,, agora deu vontade, agora que descubro (ou lembro) que ainda há que saboreie o cheiro das palavras impressas…..
    Beijoca pra você Paulovska!
    Helê

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  2. “Que poder você tem com as palavras, Helê” Copiei o que a Gei disse. emocionante! Obrigada!

    Obrigada você, Tereza, por ler e comentar!
    Forte abraço;
    Helê

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  3. Esse “heróis improváveis” me comove pra caramba, tal qual me comoveram os atletas. Que poder você tem com as palavras, Helê, minha Lenu!

    Obrigada, querida; preciso ler logo minha quase xará! :)
    Beijo grande,
    Helê

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  4. Ah, um adendo: o toque usado na execução do Hino é um vassi pra Ogum. O vassi é um padrão sonoro, um toque usado no Candomblé. Aprendi com o mestre Simas;-)

    Merci, cherie. Vi definições diferentes, então não quis arriscar.
    Beijoca estalada,
    Helê

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  5. Ai, querida, que post grandioso. Generoso. Bom. E genial: “depois de dizer como nos formamos, na abertura, finalmente apresentássemos quem nos tornamos, na despedida.” Provavelmente a síntese mais precisa do que senti na festa do encerramento.

    O esporte como lúdico, como gozo, como encontro, prazer, ritual, isso que me encanta nas Olimpíadas, (não que não me comova quando a vida mesmo injeta a história da superação, mas o que mais me toca é o riso).

    Eu não estava no Rio, eu não estava nos jogos, mas estavam, jogos e Rio, em mim.

    Nossa, como soou estranha essa última frase! Porque você não estava aqui, de fato, mas está presente na caixa de lembranças dessa olimpíada em vários momentos, em posts e tweets, divertidos, dramáticos, informativos – daí a referência a você que, definitivamente, fez parte dessa Rio 2016.
    Beijo grande e obrigada,
    Helê

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  6. Dias mágicos. Quando eu vi, o tal do espírito olímpico já tinha se apossado de mim.

    “Um espírito baixou em mim” era um título alternativo, Rê, hahahahaha!
    Sim, algo de magia no ar. ;-)
    Beijoca,
    H.

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