Senta que lá vem textão.
Há uns 15 dias mais ou menos, a Gazeta do Povo, um dos importantes jornais do Paraná, publicou um texto — que dificilmente poderia ser chamado de reportagem — atacando o que o redator chamou de “teses e dissertações pouco convencionais financiadas com dinheiro público”.
(Há muito a dizer sobre o assunto, mas antes quero explicar por que digo que o texto dificilmente poderia ser chamado de reportagem: é que, pelo menos até a última vez que eu chequei, reportagem é o relato de um fato, a partir da verificação presencial ou da escuta das partes envolvidas, sei lá, algo assim. O texto da Gazeta não mostra exatamente um fato, está mais para uma opinião mal fundamentada. E o pior: seu autor não parece ter consultado ninguém além do Google. O resultado foi uma uma colcha de retalhos feita de frases fora de contexto, apenas organizadas para produzir um efeito caricato.)
Uma das pesquisadoras citadas no texto escreveu uma resposta muito boa, muito acadêmica, explicando o porquê a pesquisa em Ciências Humanas é importante. A Gazeta publicou, mas continuou a polêmica, desta vez apresentando opiniões contra e a favor, mas em seguida elencando alguns dos supostos motivos pelos quais o dinheiro público deveria ser usado em coisas que o redator considera mais importantes que “pesquisas com pouco retorno visível à sociedade”, como as realizadas nos campos da Medicina, da Engenharia, etc.
Questã de opiniã. O texto segue tentado demonstrar, com muitos números e gráficos, que não faz sentido financiar as Ciências Sociais, as Ciências Humanas, essas coisas de quem faz um monte de coisas que não dá dinheiro.
Mais aí vem a ironia.
Ao acessar o site do jornal, a gente é obrigado a dispensar um pop-up (peloamor, quem ainda usa isso?) que tenta vender assinaturas do jornal com um argumento curioso: “não caia em fake news”.

Embora eu não tenha trabalhado muito em redações, passei nelas tempo suficiente para saber que — pelo menos naquelas onde estive — há uma firme separação entre as equipes editorial e comercial. Isso talvez explique a esquizofrenia da situação. Quer dizer, o mesmo jornal que inicia uma campanha inexplicável contra a pesquisa em Ciências Sociais, destacando trechos descontextualizados de pesquisas sobre cujas conclusões pouco podemos inferir apenas pelo título, pretende que seu público adquira milagrosamente o senso crítico necessário para distinguir as notícias “fake” das “verdadeiras”. (A propósito, há pesquisadores em Comunicação Social que não concordam com o termo “fake news”, pois… se são fake… não podem ser chamadas de notícia. Uma filigrana inútil, que não contribui muito para o progresso da sociedade, mas acho que a Gazeta do Povo deveria dar importância pelo menos a este tipo de pesquisa, não é?)
É duro trabalhar com um objeto de estudo que não tem uma materialidade concreta e facilmente identificável, seja criada pela natureza ou construída por seres humanos: a“sociedade”, este ente indefinível, que nos condiciona a todos, e a “cultura”, essa fôrma que nos modela e que tem tantas definições que quando a gente fala dela é sempre bom explicar qual significado estamos adotando. São coisas abstratas, que aparentemente existem por si mesmas e que não precisam ser estudadas para continuarem funcionando.
Só que não.
Ouso dizer que nunca precisamos tanto dos cientistas sociais quanto agora. A sociedade brasileira está visivelmente se reinventando, a um custo altíssimo. A cultura brasileira está em xeque — o “jeitinho”, que nos parecia quase uma travessura nacional, se revela como um alicerce para uma estrutura corrompida, de alto a baixo. Se não houver quem reflita sobre o que estamos vivendo, se, como diz irresponsavelmente a Gazeta do Povo, “o financiamento integral e indiscriminado de pesquisas com pouco retorno” for considerado irrelevante, bem, quem irá apontar os caminhos do país que queremos construir? Engenheiros constroem pontes de concreto: quem construirá as pontes metafóricas de que o Brasil tanto precisa?
Estudar Mr. Catra, os LGBTs e os youtubers é colocar pequenos tijolos nessas pontes metafóricas: falar desses assuntos deveria servir para aproximar pessoas de diferentes classes sociais, sexualidades, e até mesmo filhos de pais (quem tem adolescente em casa e não vive reclamando que “esse menino passa o dia assistindo vídeo, não entendo isso” levanta a mão).
O pessoal da Gazeta do Povo deveria saber que a imprensa tem um papel social fundamental. E que num momento como este é muito mais importante construir tolerância que cultivar polêmicas inúteis. O pessoal da Gazeta do Povo devia assumir que eles, também, são “gente de humanas”, ou então ir construir uns edifícios, fazer umas cirurgias, contribuir para a sociedade com essas coisas que eles consideram tão mais relevantes que escrever umas palavras para os outros lerem.
-Monix-
(Texto publicado originamente no meu outro blogue, onde escrevo sobre assuntos mais profissionais, e trazido para cá pois acho que o assunto é tão importante que quanto mais pessoas lerem, melhor. Se você curtiu e quer saber mais do meu blablabla sobre jornalismo / comunicação, dá um pulo na minha página e fica à vontade.)
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