Um país sufocado

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Quando eu era criança, nas décadas de 70, 80, Biafra era sinônimo de fome e pobreza. Servia de apelido para qualquer magricela, em referência aos meninos negros esquálidos  que víamos na TV, lá na distante e triste África.

Depois Biafra passou a ser apenas um cantor de relativo sucesso (que ganhou o apelido exatamente pela magreza, apesar de branco e de classe média). Biafra lugar, onde quer que fosse, sumiu do noticiário – como sumirá a Síria daqui a algum tempo, como sumiu a Somália, o Haiti…

Reencontrei o lugar por acaso, lendo “Meio do Sol Amarelo”, da Chimamanda  Adichie*, de quem quero ler tudo o que puder depois do empolgante “Americanah”.  Nesse premiado segundo romance, aprendi que Biafra foi uma tentativa separatista de uma região da Nigéria, uma guerra tão curta quanto terrível, que em menos de três anos matou mais de um milhão de pessoas, civis incluídos. Um sonho de nação igbo (uma das muitas etnias nigerianas) violentamente sufocado.

Mas isso eu poderia ter lido em qualquer livro de História, ou só na Wikipedia se tivesse preguiça. É preciso ler Chimamanda para entender que a Nigéria – e por extensão, a África – não é uma terra fadada à desgraça e à pobreza por maldade divina ou falta de sorte. É um país em busca de caminhos, identidades, pactos sociais, como qualquer outro no mundo. Um grupo de personagens ricamente construído estabelece uma trama de relacionamentos com os quais nós rapidamente nos identificamos, em maior ou menor medida. De um modo muito sutil e mais eficiente que discursos militantes, a autora vai minando estereótipos e ideias pré-concebidas, nos aproximando daquela realidade, em que terminamos por nos reconhecer. Estão lá as crianças famélicas, no pior momento da guerra, mas fazem parte de um vasto mosaico que constitui aquela história, também composta por uma elite econômica, por camponeses, pela classe média nigeriana e pela intelectualidade acadêmica. Uma sociedade complexa e múltipla, um espectro bem mais amplo do que qualquer menção à África evoca, ainda hoje.

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Terminei a leitura novamente impressionada com o talento de Chimamanda, com o quão pouco sabermos sobre a África e seus países, e impactada com a crueldade da guerra, sua imensa capacidade desumanizadora e desagregadora, as chagas e cicatrizes que grava nas pessoas e nas sociedades. Ia quase me permitindo um suspiro de alívio ao pensar que desse mal não padecemos no Brasil. Mas fui interrompida por uma mensagem de what’s app que pedia notícias de uma amiga que é professora no Complexo da Maré.

O suspiro virou soluço.

Helê

PS: Escrevi esse post às vésperas do carnaval. Achei que não ornava com a atmosfera e guardei pra depois.

Agora, escrevendo sob intervenção militar, combina muito mais do que eu gostaria.

*Chimamanda forma hoje a santíssima trindade das minhas autoras preferidas, junto com Elena Ferrante e Isabel Allende. Bem, tem a Fal, mas ela é hors concurs. Ah, e a Lionel Shriver tá correndo por fora, com grandes chances de transformar a tríade em quadratura. :-)

 

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Estranhos estrangeiros

“Se o Bolsonaro ganhar, saio do país” é o novo “se o Lula ganhar saio do país”.

As pessoas saem de seu país natal por diversos motivos; política é apenas um deles. Nunca tive esse desejo, mas sabe-se lá o que a vida nos reserva. Me sinto, no entanto, muito enraizada não apenas neste país estranho (definitivamente o Brasil não é para amadores), mas, principalmente, na minha cidade-maravilha-purgatório-da-beleza-e-do-caos. Toda a minha ascendência, até onde posso mapear, é brasileira. Meus pais são cariocas; meus avós vieram de São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Ceará. Nenhum deles teve pais ou avós imigrantes. Talvez por isso faça sentido eu me sentir em casa aqui.

Meu filho, que compartilha esse legado comigo, não é assim: desde muito pequeno tem vontade de ganhar o mundo. Não sei se isso acontecerá um dia. Não sei de onde veio esse desejo, nem para onde o levará. Talvez para a geração dele seja mais difícil entender a ideia de nação, já que vivem em um mundo virtualmente sem fronteiras.

Minha prima mais querida (tenho muitos, muitos primos – amo todos eles – mas essa é a que cresceu junto comigo, com quem compartilhei alegrias, angústias e sonhos durante os primeiros 20 anos da minha vida) se mudou para longe, para o frio, para um outro país que é toda uma outra vida. Uma vez por ano nos encontramos, matamos saudades, tentamos fazer com que nossos filhos tenham pelo menos uma fração da familiaridade que poderiam e deveriam ter, se não vivêssemos em um planeta tão grande e tão diverso.

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Este ano ela veio no verão, pela primeira vez em 20 anos, por um motivo especial. Está em cartaz com um espetáculo sobre a estranheza de ser estrangeiro. Um sentimento que não conheço, mas que através da poesia da música, das palavras e dos movimentos pude tentar entender um pouquinho. Afinal, dizem eles, não somos todos, na verdade, estrangeiros?

-Monix-

Diálogos carnavalescos

– Vou mais tarde hoje, tô cansada. Ontem fui ao “Desculpe o transtorno”, ao Baile do André e fiquei na merda.

– Fiquei na merda é um bloco ou foi você?

***

– Que fantasia é essa?

– Eu tô de Dalila

– Ah, do Sansão…

– Não, a da música: “Eu sou Dalila, não vou negar…”

***

– Cara, num é que a Ivete Sangalo pariu no sábado de carnaval?

– E foi pra avenida depois?!

Bom carnaval pra geral!

Helê, of claro

Odô, Ya!

(Yemanja Odoya by Júlia Rodrigues)

Saúdo a Rainha do Mar em duas representações porque sua beleza e generosidade não cabem num risco só. Ôdo, Yá, conceda tuas bençãos!

Helê

(PS: Pretendo escrever um post laico antes do dia de São Jorge; vamos acompanhar).

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