A Pantera é negra

Demorei a escrever sobre o filme Pantera Negra porque queria que meus amigos vissem sem muita expectativa, mais ou menos como cheguei ao cinema junto com minha filha. A esta altura do campeonato acho que todo mundo já viu. E da arte de fazer amigos e influenciar pessoas eu sei um pouco só da primeira parte. Também queria escrever algo, se não tão bacana quanto o filme, pelo menos digno de Wakanda. Vou tentar.

Pantera Negra começou a me encantar, antes de tudo, pela beleza – que eu sou militante pela igualdade racial, feminista e tal e coisa, mas sou também libriana: estética me arrebata, e a do filme é absolutamente estonteante. E me pareceu construída a partir de diferentes referências, texturas e padrões africanos, uma representação diversificada de um continente idem, ao contrário do que acredita o senso comum. (Impressão confirmada em várias matérias, como esta do Buzzfeed e este vídeo do NYT)

Também chamou atenção e agradou de cara o inglês não americano dos personagens. Pode parecer um detalhe, mas faz toda a diferença para tornar verossímil aquela fantasia exuberante que matém um pé na vida real. Percebo agora, ao escrever, que o filme conquistou meus sentidos antes que meu coração e mente (que se renderiam pouco depois). Um bom começo, já que é o que se procura no cinema, ser levado pelos sentidos para outras realidades.

O filme do jovem diretor Ryan Coogler tem tudo o que se espera de um filme do gênero: cenas de ação e luta, efeitos tecnológicos, queda e redenção, sem esquecer algum sentimentalismo. Mas tudo feito de uma maneira competentíssima e bem dosada – além de linda, como eu já disse. E escapa, sempre que pode, das obviedades: estão lá as mulheres empoderadíssimas, tanto e tão imprescindíveis à trama que nem precisam ser protagonistas. E, como disse uma espectadora sagaz, elas não são fortes porque sofreram, porque precisaram superar obstáculos etc., elas são fortes apenas porque são.

Pantera tem outras sutilezas, além do sotaque dos personagens, que contribuem para o acerto do filme, várias pequenas subversões cativantes: um herói que “congela” diante da mulher que ama, um vilão que, quando morre, a gente lamenta, porque era divertidíssimo; um branco que até ajuda mas não salva a pátria nem mocinha alguma; inimigos que acolhem, amigos que fazem escolhas equivocadas. O roteiro desvia de muitas cascas de banana em que podia tombar feio, seja escorregando na militância panfletária ou caindo nas soluções pré-fabricadas de filme-pop-de-HQ – dos quais, afinal, ninguém espera mais do que diversão. Mas Pantera Negra entrega mais, diverte com inteligência e humor. E entretém de fato: passei duas horas na sala escura sem lembrar de boletos e demais aporrinhações.

Para mim, a maior ousadia do filme foi colocar na boca do antagonista a fala mais contundente: uma referência aos antepassados que preferiram a morte ao cativeiro. Forte, comovente e carregada de significados, o mais evidente deles a existência de múltiplas formas de resistência e de ser negro.

Ah, sim, eu mencionei que o elenco é composto de 90% de atores negros, assim como o diretor? Não? Pois o filme também não alardeia sua negritude: ela está lá, plena como deveria, majoritária como nunca, provocando variados efeitos na audiência, difíceis de mensurar mas indeléveis (tipo Obama na presidência). Sendo negra, o filme tem para mim valor e importância únicos, que a plateia branca pode (e deve) imaginar a extensão. Eu o vejo de outro lugar – como no culto da igreja no Harlem, onde nós ficamos em assentos diferentes (e melhores que) os dos turistas.

Eu chorei ao final de Pantera Negra pelo conjunto da obra, por estar vendo ao lado da minha filha, pelo que ele representa ou pode representar para as novas gerações, e por ter esperado quase 50 anos para ver um filme assim.

Helê

6 Respostas

  1. […] produtos culturais estrelados por gente branca, comemoramos o elenco predominantemente negro em um filme de super-herói, imagine um filme cujo elenco inteiro é de pessoas negras. E elas não vivem em uma realidade […]

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  2. […] Pantera Negra, Pearl Jam e a foto do palestino que nasceu pintura […]

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  3. Tive uma leitura muito parecida do filme, me encantou a direção de arte, as diferentes referencias africanas, as mulheres (lindas, fortes e diversas! cabelo raspado, cabelos grisalhos , magras, gordas, fortes – diferentes e poderosas).
    Uma delícia de filme que me emocionou.

    Ah, que bacana, Patrícia, é o típico “tamo junto” :-D
    E você usou a palavra correta, elas são poderosas, que é um degrau acima de ser empoderada. Podem ser cientistas, guerreiras, princesas – e inclusive todas as alternativas acima, que é o caso da Suri. O filme foi um enorme e grata surpresa pra mim.
    Obrigada pelo comentário; volte sempre. A casa é nossa.
    Aquele Abraço,
    Helê

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  4. Lindo Hele! Amei a resenha. Estou esperando uma oportunidade para ver no cinema com meus filhotes e aplaudir muito!! Beijo na casa cada dia mais linda Julia

    Ô, Karina, obrigada! Vá sim; como eu disse, é antes de tudo diversão das melhores, ótimo pra curtir com filhote.
    Aquele Abraço!
    Helê

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  5. […] via A Pantera é negra — Duas Fridas […]

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