Sonhos

Foi durante uma corrida, tenho certeza, lembro até da rua por onde eu passava. Não estou certa de que foi a primeira vez que ouvi a música, mas foi quando chamou minha atenção. Começa com a cantora, Joan Osborne,  sussurrando, como se contasse um segredo: ”Sonhei com Ray Charles noite passada, ele enxergava bem”‘.  Então tem início “Spider web“, com uma batida contagiante, contando um sonho loucão  em que ela encontra Ray Charles e ele podia ver, mas não conseguia mais cantar; ficava só deitado assistindo à MTV (‘when you gain you just might lose’). Ray tira os óculos escuros e ela pode ver dentro da cabeça dele flashs, raios e a teia de aranha do título. Uma narrativa fantástica, emoldurada em uma percussão meio tribal; às vezes perece que ouvimos umas risadas ou pessoas falando ao fundo. Uma música incrível porque, além de boa,  consegue transmitir musicalmente a atmosfera onírica. E torna  agradável  uma  história que, se não chega a ser um pesadelo, tão pouco pode ser considerada um sonho bom.

 

Acho particularmente interessante porque, eu já disse aqui, a mim “os sonhos não brindam com ternuras e bons palpites, mas com angústias e reincidências”.  A frase saiu muito melhor que a situação; sou dada a sonhos que quase sempre parecem ou transformam-se em pesadelos. Nesse reino da fantasia e das mensagens que nunca consigo decifrar eu não tenho boas experiências. Para mim, uma boa noite de sono é sinônimo de apagão: pá-pum, deitou, dormiu, acordou, pronto. Invejo quem tem sonhos incríveis, engraçados, aventureiros, coloridíssimos ou em preto e branco. Ou quem consegue fazer do limão uma lemonade e, voilá, temos uma bela canção.

Por causa de “Spider web” fiquei pensando em outras semelhantes. Egressa que sou dos anos 80, comecei imediatamente a ouvir como um mantra “Sweet Dreams are made of this/ who am I to desagree?” , mas acho que o Eurythmics se refere aos sonhos da maneira mais recorrente, como algo que se deseja, e não como produto do inconsciente. Sobre isso há dezenas de canções, como a sessentista “California Dreamin” –  ainda que sobre essa eu tenha dúvidas:  a letra pictórica e sensorial  pode ser tanto uma lembrança real quanto imaginada.

Como eu dizia, encontrei em menor número as canções que falam de um “sonho sonhado“, como o que Martinho da Vila cantou, musicando poema de Carlos Drummond de Andrade – que, se não me falha a Danada, rendeu um desfile belíssimo da Vila Isabel. Esse sim, um sonho do qual não se quer acordar. E com certa ousadia, se a gente pensar que o samba é de 1980, quando ainda vigorava a ditadura militar no país:

Na limpidez do espelho só vi coisas limpas
Como uma lua redonda brilhando nas grimpas
Um sorriso sem fúria, entre réu e juiz
A clemência e a ternura por amor da clausura
A prisão sem tortura, inocência feliz“.

O samba de breque “Acertei no milhar” também fala de um bom sonho , quase altruísta; afinal, o autor pede que a mulher doe toda a roupa velha aos pobres, e eles irão viajar a Europa toda, até Paris. Só no final da canção Etelvina acorda Kid Morengueira e ficamos sabemos que “foi um sonho, minha gente”. Já Paula Toller teve mesmo um pesadelo ao sonhar que se atirava do 8o. andar. Assim como Elba Ramalho, que lembra ainda assustada que “vinha um trem de candango/ formando um bando/mais que era um bando de orangotango/ pra te pegar!”. Tão ruim que no final decreta: “Não sonho mais“! Décadas depois, o padrão de sono do Chico melhorou bastante, porque ele agora especula que deve haver “um lugar onde os sonhos são reais e a vida não “.  A sua “Moça do sonho” encanta, mas se evade sempre que ele tenta se aproximar: “Soprei seu rosto sem pensar /E o rosto se desfez em pó”. Para Gil, não é uma moça mas sim a “Menina do sonho“: uma “fada fadada a viver com seu corpo no nada” que não é personagem mas sim a responsável pelo nosso sonhar.

Para tentar escapar dos sonhos ruins, eu adormeço ouvindo a magistral Ella Fitzgerald e imaginando o cenário idílico de “Dream a little dream of me“. Vai que funciona?

Ouça a playlist completa no Spotify e contribua com sugestões nos comentários.

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Helê

 

 

 

 

 

 

 

4 Respostas

  1. Que playlist genial!

    Que bom que você gostou!
    H.

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  2. Sobre sonhos é inevitável lembrar as palavras de António Gedeão, nesse obrigatório “Pedra Filosofal”.

    Mas, claro, do que se fala aqui é de sonho acordado, consciente e utópico.
    Ainda assim, o meu sonho preferido chega na voz de Teresa Salgueiro…

    Mas, como diz a letra, “contar um sonho é proibido”…

    Obrigada, Pedro, sempre me apresentando belezas portuguesas!
    Beijoca!
    Helê

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  3. Eu sou um pouquinho do contra, então vão duas versões de uma canção que resmunga a respeito de sonhos:


    Beijo, Helê.,

    Não conhecia e gostei muito; obrigada!
    Aquele Abraço,
    Helê

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