
A quantidade absurda de talento musical reunido num palco como eu só vi numa igreja no Harlem. O orgulho e acolhimento que o filme “Pantera Negra” me proporcionou, amplificados. A esperança que me embalou após o espetáculo “Primavera das Mulheres”, em 2016.
Algumas comparações para dar a dimensão do que me causou “Elza”, que assisti na última quinta-feira e do qual ainda não me recuperei – que bom. Catártico, estonteante, poderoso e potente. E lindo. Para uma libriana praticante feito eu, nada arrebata mais que a beleza.
Ah, o insondável tempo das coisas: tive a oportunidade de ver na pré-estreia, perdi. Ia com as amigas, também não aconteceu. Mas Monix escreveu um post ensolarado aqui depois de ver a peça, com uma empolgação que não lhe é comum, e a Dedeia reforçou que ir era mandatório. Então fui com minha filha e tive a certeza rara na vida que estava exatamente onde, quando e com quem deveria estar.
Fora as correlações pessoais, “Elza” narra uma trajetória ao mesmo tempo incomum e próxima da mulher que vai da pobreza ao estrelato sem atalhos e com desvios, e de lá passa ao quase ostracismo, e cai e levanta incontáveis vezes, metafórica e literalmente. Sem nunca ter pertencido a um grupo ou movimento musical, Elza Soares tem uma carreira de décadas que surpreendentemente se torna cada vez mais relevante. De idade desconhecida (e desimportante), ela se mantém conectada com o presente com lucidez e acuidade escassas em muitos artistas mais jovens que ela. Essa cantora que começou no rádio com Ary Barroso (!) (google, milenials, para rádio e Ary) e acaba de lançar seu novo álbum pelos serviços de streaming é um vitorioso case de envelhecimento bem-sucedido. Experimente ouvi-la cantando “Dindi e “Exu nas escolas” e perceba: não é que ela tenha melhorado: ela já era formidável e conseguiu continuar sendo. Ou ser novamente, de outra maneira, mas ainda a seu modo.
Elza se recria tantas vezes, no palco e na vida, que a gente sai do espetáculo renascida também, de certa forma. Ou, pelo menos, com aval e apoio para fazê-lo sempre que for preciso.
A peça consegue ser fiel à contemporaneidade de Elza de um modo inteligente, sagaz e verdadeiro como ela. Apresenta soluções cênicas criativas, um conjunto musical (só de mulheres) impecável, um texto versátil e bem elaborado e a notável direção musical do Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet. E o elenco…ah, o elenco! Não há uma protagonista inesquecível ou coadjuvante que roube a cena: são sete atrizes e cantoras estonteantes, incandescentes, inacreditavelmente talentosas. Sete mulheres negras com um brilho tão intenso que quase cega. Talvez por isso elas apareçam aos poucos, para que a gente vá se acostumando com tanto, mas ainda assim o impacto da presença delas deixa a todos meio sem fôlego no início. Elza multiplicada por sete não é pra qualquer um.

E aqui chegamos em outro valor agregado (não acredito que usei essa expressão, mas cabe, vai) da peça, que é a plateia. Uma audiência muito mais negra do que em geral eu encontro em peças ou musicais (como o público que encontrei na excelente exposição sobre o samba, no MAR). No mínimo, racialmente mais diversa. Para mim, um conforto e alegria adicionais me ver entre os meus. Parecia que eu estava em Madureira comprando cabelo mas não, eu estava no teatro. E se representatividade importa, nêgo, imagina coletividade. Olhar em volta e não ser minoria. Não tem preço.
Caetano Veloso, que também fez um post entusiasmado sobre a peça disse, bela e precisamente: “A mulher brasileira, o povo negro brasileiro, o músico brasileiro estão vingados. Pode-se até crer em bom futuro”. É com essa disposição que você sai do teatro – convenhamos, nada desprezível nos dias que correm. Ampliei minha plataforma de campanha para “EleNão, ElzaSim!”, querendo que todos os meus amigos que estão no Rio de Janeiro ou que estarão aqui até o dia 30 de setembro vejam “Elza”. Veja, por favor. Acredite: é para o seu bem.

Helê
Com um beijo para Leila Moreno, coordenadora de produção, pelo presente de aniversário antecipado e maravilhoso.
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