
Já disse aqui algumas vezes: eu não resisto a um bom título. Menos ainda se vier acompanhado de uma boa capa. Por isso eu lembro bem da forte impressão que me causou o livro de Andrew Solomon assim que vi. O nome, estampado sobre a “Noite Estrelada”, de Van Gogh, me atraiu de imediato — e o subtítulo não diminuiu o interesse. Entrou logo na minha lista de desejos, mas só foi comprado numa promoção, em março deste ano.
O “demônio” permaneceu na estante aguardando sua vez. Quando finalmente decidi abri-lo, seguiram-se semanas de leitura empolgada e pertubação alheia — no caso eu perturbando os outros, como faço sempre quando fico levemente obcecada por algo que considero inegavelmente interessante, original, revelador. O “demônio” se enquadra em todas essas categorias e outras mais.
Comecei a leitura no dia em que questionei os limites entre tristeza e depressão, mas não esperava resposta rápida de um livro de mais de 500 páginas. Para minha surpresa, encontrei uma boa definição logo de início:
“Talvez a depressão possa ser descrita como o sofrimento emocional que se impõe sobre nós contra a nossa vontade e depois se livra de suas circunstâncias exteriores.”
Não é única nem definitiva, muitas outras definições se sucedem. Acontece que Solomon não perde tempo nem se prende a rigores acadêmicos: de cara ele identifica o objeto, desafia alguns pressupostos (como a demonização dos medicamentos) e faz sugestões de tratamento. No primeiro capítulo. Isso não faz do livro algo superficial, há outras muitas páginas para aprofundar esses tópicos e esquadrinhar teorias. Apenas deixa claro a intenção do autor de ser realmente útil para deprimidos e os que com eles convivem – ou seja, quase todo mundo.
Solomon mostra-se um pesquisador dedicado e incansável, praticante da melhor tradição do jornalismo investigativo que persegue um assunto como quem procura não apenas prender um criminoso, mas desmantelar o cartel. Olha o tema sob vários ângulos possíveis, revirando-o muitas vezes, como quando tentamos solucionar o Cubo Mágico. Transita entre ciências diversas e não despreza pistas, por mais improváveis e exóticas que pareçam. Tem a invejável capacidade de reconhecer valor naquilo em que não acredita – como a fé religiosa, por exemplo -, qualidade rara porém imprescindível a um investigador honesto. Embora escreva na primeira pessoa muitas vezes durante toda a narrativa, esforça-se sinceramente para tentar compreender os contornos específicos da depressão para negros e negras, para populações pobres, em países não-ocidentais. A condição de homem branco bem-sucedido, fruto de uma família estável, Solomon utiliza para provar que a doença pode alcançar mesmo quem, à primeira vista, pode parecer imune a ela.
“Diz-se com frequência que a depressão é algo que acomete uma classe privilegiada numa sociedade desenvolvida; na verdade, é uma coisa que uma certa classe tem o luxo de comunicar e articular. (…) A depressão — sua urgência, seus sintomas e modos de sair dela — é determinada por forças muito fora de nossa bioquímica individual, por quem somos, onde nascemos, em que acreditamos e como vivemos.”
Acrescido a tudo isso, Solomon escreve muitíssimo bem – condição sem a qual sua obra ainda seria importante, porém chatíssima. Sua prosa evita termos técnicos desnecessários, possui fluidez e humor. Ele costura com maestria a pesquisa vasta e séria com sua própria trajetória como deprimido, nos aproximando dele e do tema, humanizando a frieza dos dados e das estatísticas. Outros personagens e suas lutas são descritos com respeito e afeto, o que provoca uma leitura solidária, que desperta no leitor empatia — um sentimento tão escasso quanto necessário, seja qual for sua relação com a depressão.
“O demônio do meio-dia” foi para mim, desde o início, tanto um tratado minucioso quanto uma narrativa intimista, que me fez sentir acolhida. Mergulhar numa “anatomia da depressão” pode ser uma tarefa incômoda, para dizer o mínimo: encontrei várias pessoas que desistiram do livro, outras que sequer começaram, apesar de interessadas; uma pessoa desencorajou a leitura enfaticamente. Encarar demônios nos deixa vulneráveis a seus efeitos, é verdade; mas também é a única maneira de nos fortalecer contra eles e, eventualmente, vencê-los.
Helê
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Eu li ha algum tempo e para mim tambem foi revelador. Eu sempre recomendo, alias.
Sim, Kathia, revelador aplica-se muito bem, quanto aprendi e como me surpreendi com esse livro!
Obrigada pela visita; beijoca!
Helê
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