Menos um Mais Velho

John Bazemore/AP

Porque, como C. me ensinou, “a diáspora é um deslocamento definitivo”, a despedida de um grande de lá ecoa também aqui. Mesmo um país cada vez mais tensionado – com uma pandemia descontrolada (como aqui) e uma campanha eleitoral em curso – parou para render justas homenagens a um grande, o deputado John Lewis. Um defensor dos direitos civis, o mais jovem orador da marcha de Um Milhão de Negros em Washington – a do “I Have a Dream”; discípulo e amigo de Martin Luther King, Lewis viveu um dos papeis mais difíceis para um revolucionário: o de resistir ao tempo e permanecer relevante.

A CNN publicou uma impecável galeria de fotos do funeral. A que abre este post, com seu corpo cruzando pela última vez a ponte em Selma, me emocionou profundamente. Oprah, que o reverenciou diversas vezes em vida, lembrou que, entre as coisas que esse homem que fez História não dispensava estava a canção “Happy”, de Pharrel Williams: “It has the ability to lift my spirits and touch my being and soul.”

E encontrei um tuíte de palavras simples mas grandiosas – sobretudo ditas por alguém com um trajetória tão longa e rica – que podem nos servir nesse momento em que não podemos dispensar “words of wisdom”. Esses três instantâneos de John Lewis eu deixo aqui, como registro, despedida e homenagem.

Helê

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Brasil, mostra tua cara

Daí que 1988 não é só outra época; talvez seja outro planeta.

Rever uma novela tão emblemática como Vale Tudo é, antes de qualquer coisa, uma experiência no mundo bizarro. No plano material, cada cena é um mergulho em uma indagação sobre como vivíamos “sem” tal coisa, ou “com” tal coisa. Telefones de fio (em um dos cenários o telefone tem o fio todo enrolado, coisa que deixava meu pai maluco), videocassetes, disc-lasers (era assim que chamávamos os moderníssmos CDs no final dos anos 80, crianças), computadores grandalhões e disquetes, máquinas de telex (!), até os eletrodomésticos pesadões e quadradões, tudo me espanta. Os carros, meu Deus, os carros. 1988 foi antes do Collor dizer que os carros brasileiros eram todos umas carroças, ofendendo a indústria automobilística nacional e os defensores da reserva de mercado (é, crianças, pesquisem). Spoiler alert: eram mesmo. (Voltarei ao Collor daqui a pouco.) 1988 foi antes de o fax chegar a Brasil. E não me façam começar a falar de roupas e penteados, porque né?

figurino solange vale tudo - Pesquisa Google | Figurino, Moda, Solange
Ombreiras, minha gente, isso já existiu.

Não sei se na época era claro para mim, mas Vale Tudo parte de uma premissa (e tudo na novela gira em torno dela): a desonestidade estrutural da sociedade brasileira. A trama central se baseia nas interpretações diferentes que Raquel (a mãe) e Fátima (a filha) fazem dessa constatação inicial. Raquel acha que se todos são desonestos, cabe a ela (e a todos que a cercam) corrigir isso por meio de ações estritamente éticas. Já Fátima entende que se todo mundo torce as regras para se dar bem, a solução é abandonar qualquer senso ético como única forma de sobreviver nesse mundo cruel.

A música-tema tem um dos versos mais contundentes do rock nacional, de autoria de Cazuza: “o meu cartão de crédito é uma navalha”…

Assistir a esse dilema tendo como pano de fundo a conjuntura de 2020 dá margem a muitas reflexões.

Primeira: a novela acabou em janeiro de 1989. Em novembro, tivemos a primeira eleição direta para presidente em 29 anos. E elegemos (opa, nós quem, cara-pálida?) Fernando Collor de Mello, que baseou sua campanha na ideia de caçar “marajás”, funcionários públicos que ganhavam super salários sem trabalhar. Fala-se muito da influência das novelas da época sobre a mentalidade nacional que resultou em sua vitória, especialmente as exibidas nos meses da campanha, como O Salvador da Pátria e Que Rei Sou Eu?, mas a ideia de uma “faxina ética” direcionada apenas (ou principalmente) à classe política, olhando em retrospectiva, parece ter sido uma simplificação tremenda.

Segunda: em Vale Tudo, a corrupção está em todas as instâncias da sociedade brasileira, e ali são retratadas principalmente as mais cotidianas, com um foco especial na corrupção no setor privado: um dos vilões se dedica a desviar recursos da empresa familiar. Mais de trinta anos depois, parece que nosso foco se desviou para o “andar de cima”, a política partidária e institucional, e aquele papo sobre como a corrupção começa com quem molha a mão do guarda (que, diga-se de passagem, é outra simplificação besta, mas enfim, é um ponto de partida) foi praticamente esquecido.

Terceira: a parte da novela que fala de crise econômica e desemprego, tirando as questões ligadas à inflação, é tristemente atual. No entanto, um detalhe me chamou a atenção. A moeda era o cruzado, e tudo custava milhares de. Mas, para conseguir acompanhar os valores das coisas, percebi que tirando um zero de cada preço eu chegaria mais ou menos ao tanto que elas custariam hoje. As únicas exceções foram a diária da faxineira, que pela minha equivalência tabajara hoje vale 3 vezes mais (alvíssaras!), e o câmbio do dólar, que hoje, bizarramente, mesmo com a taxa absurdamente alta, seria seis vezes mais caro, se fosse mantida a proporção da época em relação aos preços das outras coisas.

Quarta: a exemplo de boa parte das obras de ficção, e não só as brasileiras, os vilões são pessoas muito mais interessantes. Até aí, nada de novo. Acho essa questão bem problemática, e isso talvez seja assunto para outro post. Mas em Vale Tudo os mocinhos de modo geral são muito chatos, e a suposta heroína, Raquel, é insuportável na sua unidimensionalidade — seus chiliques e suas lições de moral parecem, vistos de hoje, um ensaio canastrão para sua meteórica e constrangedora passagem pelo governo federal. Parece que Regina Duarte acreditou na personagem que interpretou três décadas atrás, e comprou aquele discurso fajuto de “vamos moralizar o país”. Raquel, a chata, com certeza seria uma bolsomonion (e pior, uma “tia do zap”) em 2020.

Quinta: há, no entanto, honrosas exceções a esse padrão de mocinhos unidimensionais, e elas se encontram principalmente nas personagens que encarnam os temas “polêmicos” que toda novela que se preza precisa abordar. A Heleninha Roitman que vejo hoje me parece bem mais interessante (na época eu a achava chata, provavelmente por conta da interpretação excessivamente dramatizada de Renata Sorrah, que eu não curto). A relação de Laís e Cecília marcou época, mas é engraçado ver como elas eram apresentadas como “amigas” e ninguém falava diretamente sobre o fato de obviamente serem um casal — até que uma delas morre e a questão da herança entra no meio. Tem sido interessante lembrar que estávamos saindo de um longo período em que produtos culturais e artísticos sofriam censura prévia, e que de repente se podia falar de certos assuntos. No Brasil de Damares, não sabemos até quando.

Há outra muitas reflexões possíveis, claro. Se quiser, deixe as suas nos comentários. Eu por aqui fico pensando que na verdade, fora cenários e figurinos, o Brasil de 2020 é de novo tristemente parecido com o de 1988.

-Monix-

Válter e eu

“Breaking Bad” estreou em 2008 e terminou em 2013; suspeito que não há nada sobre a série que não tenha sido dito. Apesar disso, escrevo – para registrar as impressões que causou em mim, para trocar figurinha com outros que viram, e também para tentar me despedir de Válter (como eu chamo Walter White/Heisenberg desde o início, nem sei porque). Terminei a série há semanas mas essa história ainda reverbera em mim. Algo me capturou de maneira irremediável no percurso desse homem que no meio da vida faz um desvio radical. As condições de temperatura e pressão capazes de provocar, acelerar ou impedir essa mudança; a perseguição de um desejo que, afinal, não era genuíno; a felicidade num lugar diferente de onde a procuramos, tudo isso (e mais) me incluiu entre os entusiastas da série.

Tinha tentado ver BrBa antes e achei o primeiro episódio chato e arrastado (o que me parece totalmente incompreensível agora). A quarentena me pareceu a ocasião perfeita para tentar novamente. Minha conversão se deu aos poucos. No começo eu dizia que só queria saber como Válter perdeu as calças. Porque tudo começa com a dita cuja voando e a intrigante cena desse homem de cuecas numa paisagem árida gravando um vídeo de despedida para a família. Um começo que condensa muito do trágico, patético, engraçado, tenso e dramático que viria a seguir.

O episódio começa pelo fim; após essa cena bizarra nós somos apresentados a esse cidadão mediano e sua vida medíocre que, aos 50 anos, é presenteado com um câncer de pulmão em estágio avançado e decide prover sua família nos meses que lhe restam produzindo a melhor metanfetamina do mercado. (Como é que eu não me interessei por isso antes?) Nos primeiros episódios parece que tudo que pode dar errado dá, e segui movida pela curiosidade em ver quando esse cara ia se dar mal, o que parecia inevitável e iminente.

Aos poucos fui pegando gosto pela história, pelos personagens, locações (eu tenho um fraco por desertos). Aliás, o fato de ser ambientada no Novo México confere tons especiais à narrativa. Uma paleta de cores terrosas domina a paisagem e a vida das pessoas, compondo uma atmosfera peculiar: esta não é a América glamurosa e idealizada que a gente costuma ver na tevê. Pelo contrário, é uma quase esquecida, perto demais do incômodo e subdesenvolvido vizinho latino. Mas nem por isso é menos América. 

Vale dizer que a escolha do local foi um dos vários aspectos não programados da série – e eles são muitos e surpreendentes. As filmagens, que seriam na Califórnia, mudaram para o Novo México por detalhes técnicos. O personagem Jesse Pinkman duraria apenas alguns episódios da primeira temporada, mas a interpretação visceral de Aaron Paul fez Jesse sobreviver — inclusive à série. E várias outras pequenas histórias como essa se acumulam nas muitas entrevistas e reportagens disponíveis sobre BrBa . A produção soube tirar vantagens do acaso e se adaptar bem aos imprevistos naturais de uma produção do tipo.

Um ponto alto de Breaking Bad está no aspecto visual — não tenho certeza se “direção de fotografia” dá conta de tudo a que me refiro; se sim, ela é primorosa. Há engenho na escolha dos enquadramentos, nos objetos de cena, no movimento da câmera — nada é por acaso, e quase tudo tem um significado. Eles fazem “rimas visuais”, como alguém nomeou: uma cena que faz lembrar outra sem que sejam iguais. São detalhes que perdem a força e até mesmo o sentido se descritos, precisam ser vistos. A história de Válter é contada por diálogos e silêncios, planos, contraplanos, uma ótima trilha sonora e tudo mais que carateriza um bom produto audiovisual.

Nada disso se sustentaria sem excelentes interpretações, sendo Brian Cranston o destaque absoluto. Salvo ignorância minha, ele fez de BrBa o que Válter fez com o câncer: uma oportunidade para fazer algo grandioso em uma carreira até ali mediana. Sua interpretação arrebatadora, sob todos os aspectos memorável, foi capaz de nos manter interessados nesse personagem que desprezamos muitas vezes, pelo qual torcemos para que se foda tantas outras, mas com quem estabelecemos uma ligação incontestável. E que também despertou nossa empatia e compaixão.

Válter não é um personagem agradável. Em determinado ponto da trama eu me dei conta de que não gostava dele, mas podia compreendê-lo e até torcer a favor dele, aqui e ali. Gostar a gente gosta do Pinkman, a irresistível empatia pelo adolescente perdido que todo mundo foi um dia, em certa medida. Mas Válter, não: é um adulto que utiliza a doença terminal como passe para jogar fora seu compasso moral com a desculpa mais nobre  – pelo bem da família. Alguém contraditório, perdido, corajoso, confuso , culpado e até mesmo piedoso, embora a sua imagem violenta, egoísta e cruel tenha prevalecido.

 

Isso, aliás, me incomoda um pouco no fandom de Breaking Bad. A série tem em torno de si uma aura de veneração: há uma legião de apaixonados capaz de discutir teorias, contestar falas e produzir artes incríveis, mesmo anos depois do fim. Mas percebo um viés equivocado em ver Válter quase como um super herói. É como se não tivessem reparado que, o tempo todo, era de ambivalência e ambiguidade que falavam Vince Guillian ( o criador da série) e Cranston em sua interpretação multidimensional. Mesmo nas temporadas finais, quando Válter fica mais Heinsenberg, não desaparece a sombra do medo, da dúvida e da dor em sua face. (Não por acaso, num momento de vitória absoluta, ele tem um curativo no meio da cara, uma lembrança incômoda de sua fragilidade).

Suspeito que essa mesma galera que enaltece o Heinsenberg é a mesma que hostiliza sua esposa, Skyler, creditando a ela a responsabilidade pela infelicidade do Válter, a mulher controladora que o mantém cerceado nos limites de um casamento opressivo. Acho essa uma visão simplista e machista (desculpem a redundância). No casamento, é preciso dois para fracassar ou ser feliz, a culpa nunca é apenas de uma pessoa (eu sei, I’ve been there, e voltei pra contar). Skyler ama Válter profundamente e isso fica claro muito mais por suas ações que pelas palavras. Tenta compreendê-lo e ficar ao seu lado mesmo quando descobre suas atividades. É ela que faz Válter confrontar suas reais motivações quando lhe pregunta “quanto é suficiente”. Enquanto Válter encarna o macho típico na falta de contato com as próprias emoções, no desconhecimento de seus desejos verdadeiros e na ontológica inabilidade de comunicação.

Apesar disso, não o considero um monstro. As circunstâncias e suas escolhas o levaram a fazer coisas monstruosas, mas Válter me parece tão humano quanto eu e você, e é isso que o torna assustador, terrível, e também sedutor. Um mentiroso contumaz cujas mentiras mais graves foram contadas para si mesmo. Valter é ao mesmo tempo seu próprio herói e algoz, na busca por se redimir da sua mediocridade.

Poderia falar muitas outras coisas sobre BrBa, mas a ideia é se despedir, não falar sem parar. Quero destacar apenas mais dois aspectos: Breaking Bad não mima nem subestima a audiência. Os personagens não ficam justificando seus atos, explicando suas razões; muito pelo contrário. Você tira suas conclusões e ao longo da história vai comprovando teorias ou descobrindo mal-entendidos. Talvez por isso até hoje desperte debates apaixonados internet afora.

E por fim, mas não menos importante, Breaking Bad não sucumbiu ao erro comum do universo das séries, que é ser vítima do próprio sucesso. Seu público foi crescendo aos poucos, ao longo das temporadas, mas ali entre a terceira e a quarta já havia quem questionasse o plano do genial Vince Gilligan, de parar na 5ª temporada. Ele se manteve fiel a sua fórmula, sabendo que, como na Química, qualquer alteração muda o resultado final. Vince soube, ao contrário de Válter, a hora certa de parar.

Helê

Sideral

Do Pinterest

Da série Corações

Helê

 

 

Há vagas

Era pra ser apenas mais uma mensagem num grupo de oportunidades de trabalho para jornalistas. Enviaram  o anúncio de uma vaga que pedia candidatos negros ou negras. Pouco tempo depois, alguém enviou a seguinte mensagem: “Estou indignada. Se a pessoa não for negra não é qualificada? Não conhece de cultura negra? AFF!” Logo depois precisei desabilitar as notificações do grupo, as mensagens não paravam, num fluxo constante e implacável: a Indignada foi contestada, com maior ou menor delicadeza  e paciência, por todos os que se manifestaram. Se alguém concordou com ela, calou. Eu fiquei acompanhando: em tempos de quarentena toda treta é distração. Sem me pronunciar, porque tenho preguiça de educar branco – eles que lutem.

A Indignada  tentou responder. A certa altura disse, entre outras coisas, “trabalho e já trabalhei com vários negros, extremamente competentes” (aos berros, utilizando maiúsculas) . Que é outra maneira de dizer “nada contra, tenho até amigos que são”. Apanhou mais que Judas no sábado de Aleluia (essa é velha, hein? Eu também.). Mas “apanhou” sem baixaria, sendo contestada com vários níveis de argumentação. Algumas até bem elaboradas, como a que falava sobre o “pacto narcísico da branquitude”. Não houve xingamento, ela foi chamada apenas e tão somente de racista – errado não tá. Duas pessoas sugeriram que a Indignada deixasse o grupo – o que ela acabou fazendo, menos de uma hora depois da mensagem original, sem dizer adeus. A esmagadora maioria (incluído o moderador do grupo) apoiou os requisitos da vaga e condenou a postura da Indignada.

Eu fiquei surpresa com a força e a unanimidade com que ela foi rechaçada.  Fosse uns anos atrás (não muitos), teria acontecido o oposto: o anúncio, se houvesse, seria mais contestado que defendido. E a composição do grupo não justifica essa reação; jornalista não é mais conscientizado que, sei lá, um engenheiro civil formado (ironia intended). O episódio me parece um sinal de que houve alteração nas relações raciais no Brasil e na compreensão de suas nuances, impasses, forças. Tenho a impressão de que certo discurso, antes restrito ao movimento negro e à academia, transbordou para outros espaços. Estamos inegavelmente mais  conscientes e vocais. Aturamos menos e falamos mais, muito mais  – e melhor. E enquanto adquirimos novos instrumentos  e lapidamos a retórica, os brancos ainda recorrem ao pueril e  rudimentar “tenho até amigos que são”. Sofistiquem-se: deixem de ser racistas.   

Arte de Temi Coker, reproduzida  no Pinterest

Helê

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