(Ainda) notas sobre a Covid

A Covid-19 não tem remédio mas tem cura — um paradoxo, uma angústia, mas ainda assim melhor desse jeito que o oposto. Doença recém-surgida, assemelha-se a uma roleta russa gigante que aleatoriamente distribui leves resfriados, pneumonias fulminantes, nada, perda de sentidos, sintomas longos e extremos, ou coriza e febre. Não saber com o quê você vai ser sorteada te coloca numa posição de vulnerabilidade absurda.

Mas não, não é a pior doença que já apareceu no planeta — ou pelo menos não a conhecemos o suficiente nem para afirmar isso. Eu vi os primeiros anos da Aids no mundo e nada parecia mais triste que aquilo. E foi um fantasma horroroso por muitos anos imaginar que o gozo poderia nos matar num sentido não figurado.

A Covid-19 é, seguramente, a que mais assusta agora, e a mais desafiadora porque não basta ter recursos para combatê-la. O problema é o que ainda não sabemos — nós, que acreditamos cada vez mais que sabemos tanto sobre tudo.

É realmente incrível que não haja uma explicação lógica para que a gente esteja até agora torcendo pelo Paulo Gustavo, um cara jovem, saudável e com recursos, junto com as velhinhas italianas octogenárias que deixaram o hospital sob aplausos e lágrimas. Mas havemos de aplaudir o Paulo também!

Não tem remédio mas tem cura, não sabemos porque age tão diferente entre as gentes, mas já criamos uma penca de diferentes vacinas que podem evitar a forma mais grave e a morte. E seguimos assim, ansiosos, gratos, impacientes e esperançosos com a ciência — e absolutamente putos com a imbecilidade e a estupidez dos homens — fora a perversidade deliberada, para a qual tinha que haver punição proporcional. Ouvir um milico de alto escalão dizer que se vacinou porque quer viver e não vê-lo dedicar-se todas as horas de seu dia a fazer o mesmo pelo povo brasileiro deveria ser considerado flagrante de homicídio doloso.

Mas no momento estou evitando gente tóxica em qualquer nível, atrapalha a recuperação. Não gosto da metáfora da luta, dizer “venci” a doença. Não sei explicar, talvez seja medo de despertar-lhe a ira e o desejo de uma forra. Fico mais confortável dizendo que sobrevivi à Covid. Que termina, mas não acaba. Desde que ultrapassei a marca importante dos 14 dias eu me sinto estranha e fora do meu registro natural. É como se eu estivesse em uma outra rotação, mais lenta. É como se eu estivesse voltando, embora eu não saiba dizer de onde. A cada dia mais eu me sinto um pouco mais eu mesma, embora desconfie que não seja possível voltar exatamente ao que eu era. Bom, no mínimo há 25% da capacidade pulmonar a recuperar — e eu fico me dando tapinhas mentais: ainda bem que deixei de ser fumante há mais de 20 anos.

Não sei qual é a classificação médica, talvez meu caso tenha sido leve, já que a internação nunca chegou a ser cogitada. Às vezes sinto até certo pudor, diante de tanta dor esmagadoramente maior. Mas há um um lugar pra minha dor nessa experiência assustadora e desagradável. Para mim foi grave o suficiente para sair dela ainda mais solidária com quem é por ela atingido e menos transigente com qualquer filho da puta que esboce o mais leve desacordo com a gravidade dessa situação.

Nos primeiros dias eu consegui o impossível, que é ficar ainda mais emotiva do que eu, que posso chorar com Tom e Jerry, já sou. Agora acho que isso está normalizando. Lentamente, como tudo, pedindo sempre um pouco mais de calma. É uma doença agravada pelo seu contexto político, e também por conta dele deixa em nós uma dose de stress pós-traumático. Um vírus que concentra e condensa muitos de outros males desses tempos; a nossa gripe espanhola, a nossa guerra, a primeira grande cicatriz do século 21.

Eu preciso dizer que fui muito bem tratada nas vezes em que fui à clínica da família Hélio Pelegrino, e também na UPA da Tijuca. Pouca espera, médicos atenciosos, que tiraram as minhas dúvidas e reforçaram que não existe tratamento precoce para Covid. Também tive o apoio informal e fundamental de uma médica amiga, que atende pacientes da doença na enfermaria de um hospital federal aqui no Rio. Então, mais um vez e sempre, VIVA O SUS, PORRA! Se depois de um ano a gente já sabe que a humanidade não vai melhorar e tal, vamos pelo menos escolher algumas batalhas e permanecer nelas.

Coisas que eu não quero esquecer:

  • o carinho firme da minha filha, que devia estar tão ou mais assustada que eu, mas foi âncora e farol.
  • O som da torcida do Flamengo no dia do jogo contra o Palmeiras, por algum motivo um dia em que me desesperei com a doença. Era aquele silêncio tenso de domingo de pandemia com jogo decisivo: dava pra ouvir o vizinho abrindo uma lata de cerveja. A gente perdia. No gol do empate, o grito coletivo que sai feito uma erupção: aquele som reverberou dentro de mim, e eu chorei emocionada com aquela onda de vida que me atravessou.
  • E a expressão de alívio no rosto da minha amiga Caetana quando ela finalmente me viu. Eu vi a exata medida do medo que ela sentiu e do amor que nos une, tudo estampado no seu rosto expressivo, familiar, amoroso.

Nossa vingança vai ser sobreviver; nossa audácia: ser feliz.

Helê

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Monix Day

Aglomeração no bar, lembra?

É hoje , gente, dia de dizer coisas doces e amorosas para La Otra. Sobre idade não estamos contando por enquanto, mas parabéns, presentes, mimos e dengos são que bem-vindos (necessários, eu diria). Viva mi Sócia!

Helê

Valei-me meu São Jorge Guerreiro!

VACINA!

Helê

Condenado

Protesto na França | Foto: Anne-Christine Poujoulat / AFP

O assassino de George Floyd foi condenado ontem, nas três acusações às quais foi acusado.

O primeiro policial branco condenado por brutalidade policial contra um preto na história americana.
Não é tudo, mas não é pouco.

Helê

O ano do meu cinquentenário

O ano do meu cinquentenário meio que não aconteceu — mas por outro lado aconteceu sim, e muito.

Foi um ano de isolamento forçado, e isso talvez tenha me deixado mais melancólica do que eu deveria ter sido em um ano de cinquentenário.

O ano do meu cinquentenário teve uma comemoração remota, com bolo encomendado pelas amigas e a mensagem “Feliz Cinquentena”. Foi um bom jogo de palavras, mas infelizmente estava longe da realidade: a quarentena virou trezentos-e-sessenta-e-cinquentena e parece que ainda falta muito para acabar.

O ano do meu cinquentenário registrou uma coincidência matemática que nunca vai se repetir: ano passado, eu e meu filho comemoramos aniversários simbolicamente importantes (eu 50, ele 18). Teria sido divertido e emocionante comemorar com uma celebração bem marcante, talvez uma viagem daquelas de guardar para sempre na memória. Em vez disso, passamos um ano e sabe-se lá quanto tempo trancados dentro de casa. E poucas coisas devem ser mais próximas de um pesadelo para um cara de 18 anos do que passar 12 meses convivendo com a mãe cinquentenária. (Mas ele é educadinho e nem deu bandeira.)

O ano do meu cinquentenário foi triste. Foi um ano de perdas, em que mesmo quem não tem do reclamar pode reclamar — porque a vida nos pregou muitas peças, a todos nós, no ano do meu cinquentenário.

O ano do meu cinquentenário está acabando e parece que nem começou. Ao mesmo tempo, parece que sempre existiu. Como diria nossa amiga G., passei o ano do meu cinquentenário presa na infinitena, e não foi legal.

O fim do meu cinquentenário me fez lembrar de uma amiga que dizia: o problema não é chegar aos trinta, a data redonda a gente comemora e tal. O problema é quando a gente faz trinta… e um. Em 2020 não pude nem comemorar a data redonda; em 2021 os 51 dificilmente me parecem ser uma boa ideia (referência a ser entendida por quem está perto do cinquentenário, para mais ou para menos).

O ano do meu cinquentenário foi sem nunca ter sido. Uma espécie assim de Viúva Porcina do meu calendário pessoal.

-Monix-

Dos Cadernos da pandemia para o Diário da peste

Foi como silenciar, de uma hora para outra, um turbilhão de ruídos, informações, providências da vida cotidiana, desesperos governamentais para passar a ouvir o próprio corpo com o máximo de atenção e cuidado possíveis. Tudo o que vivemos, discutimos e lidamos há mais de um ano mudou quando senti os primeiros sinais de infecção. Saiu de cena a Pandemia, coletiva, mundialmente disseminada, assustadora porém distante e entrou no meu quarto a Covid-19; sentou na poltrona mais próxima sem ter sido convidada e passou a me olhar nos olhos todos os dias e respirar no meu cangote como se eu fosse uma presa. Tudo o que era real e terrível torna-se hiper-real, um baque. O Medo.

Senti muita febre nos primeiros dias, dores no corpo e um cansaço ancestral. Dormi por horas, alterando estados de consciência seja pela condição febril, seja pelos sonhos sempre intranquilos. Confinada no meu quarto, eu perscrutava atentamente o som da minha respiração para saber estava como deveria, com medo de perder qualquer mínimo indício de que as coisas podiam piorar. Entre muitos e obrigatórios litros d’água – das poucas coisas que sabemos que funcionam, ainda que também não curem. Porque, como se sabe, não há cura, a não ser a que o corpo engendra. Ter uma doença que já matou milhões de pessoas e para qual não há remédio, apenas esse conhecimento, provoca tonturas; eu me senti (e ainda me sinto às vezes) espreitada pelo mal e, por isso, não posso dar nenhum passo em falso.

A gente não quer pegar Covid. Se pega, torce pra ser leve. Se não é, torce pra ser rápida, para não precisar internar, para não precisar intubar, para se recuperar, para não ter sequelas. São muitas coisas que podem dar errado,  e até aqui tive mais sorte que o contrário, mas eu não dispenso nenhuma gota de fé, alto astral, carinho, esperança, good vibes, oração, vibração ou qualquer luzinha miúda na minha direção e agradeço cada uma delas, comovida. Contra o mal que a gente não conhece, só mesmo a força mais poderosa que a gente experimenta: o amor.

Helê, no 11° dia de infecção, tratada em casa 🙏🏾 pela filha mais amorosa e foda❤️. No gerúndio da melhora, um dia de cada vez.

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