Orgulhoso

Arte de Leo Mendes

Da série Corações

Helê

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Lição

Eu devia ter uns dez anos, se muito. E estava conversando com meu pai, não lembro sobre o que exatamente, e ele me disse a frase fatídica: “Tudo é política. Tudo é um ato político”. Espanto. Descrença. Não é possível, meu pai devia estar exagerando ou só sendo impaciente. “Tudo tudo, pai?” E ele, irredutível: “Tudo!” Revirei todos os conhecimentos que tinha conseguido juntar até ali pra tentar combater aquilo que parecia uma senteça da frieza do mundo. Não podia tudo na vida ser aquilo que eu achava cinza, chato e de adulto como a política. E então usei o exemplo que me parecia o mais distante possível e me parecia irrefutável: “Um beijo na boca, pai? Beijo é política?” Ele nem perdeu tempo considerando meu argumento pretensamente definitivo: “Sim, claro, até um beijo é um ato político”, respondeu, inabalado.

Sem mais recursos, eu desisti, mas não me convenci. Fiquei ainda algum tempo chocada com o que me parecia uma heresia. Como podia ser político um gesto tão lindo? (Lembre que eu tinha só dez anos, sabia menos sobre beijo que sobre política…)

Só mais tarde – mas nem tanto assim, no começo da adolescência – eu compreendi o que meu pai quis dizer. Descobri, por exemplo, a potência de uma frase como “Faça amor, não faça a guerra”, que aos dez anos daria um curto-circuito na minha cabecinha. Mas na qual eu já não via contradição ou inconsistência, pelo contrário: estava impregnada de política – e também de afeto e de muitos outros significados. Eu agradeço por ter sido educada para compreender a política como algo amplo, ordinário, presente no cotidiano de todos, cientes ou não disso.

E me irrito praticamente todos os dias com uso equivocado da palavra, as falsas oposições (‘é um quadro técnico, não político’ – ahã…) e com a ignorância orgulhosa de quem acha que política é aquilo que se faz em Brasília e não as mensagens mentirosas que eles distribuem no zap da família. Leio estarrecida comentários do perfil de um sindicato: “Cuidem de nossos problemas e deixem a política de lado.” Tenho ganas de responder: “Amadah?!?!”

Barba 🏀 on Twitter: "No segundo o beijo fictício de 2018 entre Bolsonaro e  Trump do artista BadBoy Preto em Maracanaú, Ceará. Artistas diferentes,  lados diferentes do espectro politico, países diferentes... Mas
Mein Gott, hilf mir, diese tödliche Liebe zu überlebenobra do artista russo radicado na Alemanha, Dmitri Wrubel. 

Helê

Conversas com adole antes das 7h ou Posts Íntimos

Descobrindo o pinto - Blog Dri Viaro - Família, viagens, gastronomia e  cotidiano


– Mãe, a Fulana queria ter um pinto.
– Isso é uma metáfora, filha?
– Não, mãe!
– Então ela quer um pinto bicho?
– Não, mãe, ela queria ter um pinto pinto (faz o gesto com as mãos).
– Mas pra quê ela queria ter um pinto? Ela é trans, gay…?
– Não, mãe. Eu sei lá. Aí ela perguntou pro Sicrano como é ter um pinto e ele morreu de vergonha.
– Claro, filha.
– Ela também perguntou se ele já se masturbou, como é. Ele ficou suuuuuuper sem graça.
– Claro, né, filha! Isso não é coisa que se pergunte num grupo, é muito íntimo. No máximo com um amigo ou amiga, a dois.
-…
– Além do mais, é uma pergunta irrespondível. Não tem resposta.
_ Ué, por que não tem reposta?
_ Porque cada um é um, ué. Ele não sabe dizer como é ter pinto, ele já nasceu com um, não sabe como é ser de outro jeito. É como se eu te perguntasse como é ter xoxota.
_ É legal. Mas às vezes coça.

(escrito em junho de 2015 e encontrada acidentalmente em junho de 2021)

Helê

Canções de guerra, quem sabe canções do mar

Depois de um longo período sem conseguir me concentrar em nada, nem mesmo no escapismo catártico da ficção, aos poucos estou voltando a consumir alimentos para o espírito. #alertadeclichê

Eu sempre fui devoradora de filmes, séries, livros, e, mais recentemente, podcasts. Por isso, me preocupava um pouco minha total incapacidade de assistir mais de 20 minutos de um filme, minha total falta de vontade de começar uma série por saber que não daria conta de ir adiante, e, claro, minha total falta de foco para ler mais de duas páginas de um livro. Acho que muita gente está assim também, e ter companhia me deu algum conforto, claro. Mas o que realmente me deixou satisfeita foi conseguir, aos poucos e sem explicação, voltar a encontrar prazer nas coisas que sempre amei.

Daí que nos últimos meses vi muita coisa interessante, li um livro lindo que ganhei de presente, maratonei séries, enfim, I’m back :)

Como gosto de anotar o que estou vendo e ouvindo, reparei que nas últimas semanas assisti vários filmes passados mais ou menos na época da II Guerra Mundial — um pouco antes, durante, um pouco depois. (Eu sempre fico impressionada com a capacidade da indústria cultural de produzir infinitas obras sobre os horrores do nazismo. Já houve uma moda de filmes sobre a Guerra do Vietnã, que aconteceu bem depois, e a fase passou. Mas a II Guerra continua rendendo assunto até hoje. E faz sentido: depois de ler Hannah Arendt eu entendi.)

***

Antes de chegar a um conclusão, se é que chegarei, deixo o registro dos filmes que vi (e um que revi) nas últimas semanas sobre esse tema.

Operação Final: agentes do serviço secreto israelense vão à Argentina para capturar e retirar do país o criminoso de guerra Adolf Eichmann (cujo julgamento inspirou outra obra da Hannah Arendt que ainda não li). A operação é bastante questionável do ponto de vista do Direito Internacional (talvez flagrantemente irregular, mas sei lá eu). Mas seus resultados concretos e simbólicos são, esses sim, inquestionáveis.

O Fotógrafo de Mauthausen – espanhóis derrotados na Guerra Civil foram tornados apátridas pelo ditador Franco, e enviados ao campo de concentração de Mauthausen, na Alemanha. Lá, um deles se torna assistente do oficial nazista que fotografava as atrocidades cometidas. Conforme os prisioneiros percebem que o fim da guerra se aproximava, alguns deles se unem na tentativa de preservar os negativos que serviriam (e serviram) de provas nos tribunais do pós-guerra. O filme é baseado em acontecimentos reais, e algumas cenas reproduzem fielmente as fotos tiradas na época.

A Escavação – pouco antes da guerra começar (a Inglaterra já era sobrevoada por ameaçadores aviões alemães), uma viúva, proprietária de terras, decide escavar um terreno onde, segundo a lenda local, havia coisas antigas debaixo da terra. Ela contrata um arqueólogo amador, eles fazem uma descoberta muito importante e o resto é história (e História). A trama não é lá grande coisa, mas as imagens da escavação são sensacionais e valem o filme.

Lida Baarová – em meados da década de 1930, em plena ascensão do nazismo na Alemanha, uma atriz de cinema tcheca, já famosa em Praga, se muda para Berlim na tentativa de ser bem sucedida por lá. Na época, Berlim era um polo cinematográfico que competia com Hollywood — e para a qual perdeu talentos como Fritz Lang e Marlene Dietrich, fato citado em uma das cenas. (Aliás, eu só fiquei sabendo mais sobre essa era de ouro do cinema alemão quando visitei o Museu do Cinema berlinense.) Bom, pra variar, I digress. Voltando ao filme: a atriz Lida Baarová de fato consegue fazer sucesso na capital alemã, tanto que chama a atenção do Führer em pessoa e do poderoso ministro da Propaganda Joseph Goebbels, de quem torna-se amante. A história de Lida é uma história de decisões erradas.

A sociedade literária e a torta de casca de batata – logo após o fim da guerra, uma escritora londrina conhece, através de cartas, um grupo de amigos moradores da ilha de Guernsey, que chegou a ser ocupada pelo exército alemão. Deu vontade de rever um confort movie, escolhi esse. Apesar do tema de guerra, é uma história doce sobre como o amor e a amizade podem surgir em momentos (e por pessoas) que não se espera. O livro, um romance epistolar delicioso, já foi tema de post da Helê.

***

Bom, depois dessa enxurrada de filmes mais ou menos sobre o mesmo tema, alguns mais delicados, outros bastante pesados, me peguei pensando por que será que estou tão interessada na II Guerra Mundial, que nem é um período histórico pelo qual eu tenha uma preferência especial.

E o mais estranho: a vida real está tão difícil, tão complicada, que eu deveria estar buscando conforto na ficção, eu acho. Em vez de assistir a coisas ainda mais horríveis.

Mas talvez seja isso: talvez, de algum forma, saber sobre coisas horríveis pelas quais a humanidade já passou, conhecer aquilo a que sobrevivemos, esteja me ajudando a lidar com nossos tempos duros. Eu ainda quero acreditar que nós somos ação, eles são reação. Eles passarão, nós passarinho.

-Monix-

Pastilhas Garota – edição Infinitena

O tempo do apartamento é tão fugaz (…)
me dá tua mão mascarada me leva daqui/ prum tempo que for qualquer tempo que for pra fora desse apartamento/que o tempo aprisionou

Foi totalmente por acaso, procurando um som pra me acompanhar no home office, que descobri o novo álbum do Marcos Sacramento, chamado “Crônicas do apartamento 20“. Deduzi que tratava-se de canções da pademia, sons da quatentena, e era exatamente isso. Sacramento fala de um tempo que não é mais tempo, que não sobra mais, de estradas sem caminhões e brisas sem aviões. Tempos duríssimos.

Estou tão só e demora esta solidão sobrehumana
Tão só, tão só que mesmo os gatos de casa/ mesmo deles emana
um torpor exageradamente solitário

Eu costumava ter certa desconfiança com obras artísticas que cujo tema fosse algo muito próximo. Quando vi, por exemplo, a Netflix anunciando uma série chamada “Distanciamento social“, torci o nariz. Achava que não é possível retratar tão bem algo sem alguma distância do que está em foco. Mas a curiosidade foi maior que o pré-concebido, e tive uma surpresa agradável e positiva com a série.

Os episódios são independentes, praticamente pequenos curtas e, como pode acontecer nesses casos, a qualidade varia entre eles. Mas de um modo geral, vale a pena assistir. Há algumas atuações excelentes, tramas ora divertidas, ora realmente dramáticas, e a sensação persistente de familiaridade. Quase todos nós vivenciamos em algum grau uma (ou muitas) daquelas situações. O pai que tem que cuidar da filha enquanto a mãe enfrenta a Covid isolada no quarto, a cerimônia funeral on line, adolescentes paquerando via web.

Distanciamento Social | Site Oficial Netflix

A familiaridade incomoda em vários momentos, pode ser reconfortante em outros; o fato é que não ficamos alheios à tela: também é mais difícil assistir se estamos envolvidos no enredo.   

A noite está parada, abalada, abalda parou.
A noite está fechada.
A vida foi travada
tudo é anormal

As crônicas cantadas de Sacramento despertam sentimentos semelhantes. Da varanda de seu apartamento em Santa Teresa, com um vista privilegiada e ampla do Centro do Rio, ele registra silêncios e sinais, angústias, reflexões, lembranças e desejos de alguém acostumado ao palco e à experiência coletiva da música obrigado a se isolar. Impossível não se identificar em vários momentos e versos. E, como todos já descobrimos, nem só de tristeza e melancolia se vive  uma pandemia. São vários os ritmos visitados por Sacramento, e é um samba (sempre ele!) que carrega os versos mais luminosos e esperançosos. Lembrando ser “um samba que já nasce em sacrifício – pois o vício de sambar é ancestral”, manda o recado, papo reto:

Gritam nebulosas do espaço
que a vida é infinta, que ela vai continuar!

Procurando as letras das canções para escrever o post, emcontrei o site do cantor e compositor e lá soube que ele fez também uam álbum visual, disponível no YouTube. Igualmente instigante, inteligente e bem feito. Marcos Sacramento fez uma margarita ótima desse limão azedíssimo que estamos tomando forçosamente há mais de um ano. Vale muito a pena provar.

***

Uma outra iniciativa que é cria  direta da pands é o Museu do Isolamento, perfil no Instagram que publica trabalhos artísticos que abordam…isso tudo que tá aí. Tem humor, crítica, raiva, bom gosto, de tudo um pouco, e quase tudo muito intereressante, criativo e…familiar. De novo uma sensação de conexão com o outro que eu não sei quem é mas que está vivendo coisas muito intensas e parecidas. Também acho que vale a visita. 

Arte feita por Carol Yokota, para ver mais acesse @carolyart #museudoisolamento

Arte feita por Cecile Mendonça, para ver mais acesse @picortes_ 

Arte feita por Helena de Paula e Gabriela Bosco, para ver mais acesse @matracanossa #museudoisolamento

***

E, desviando da minha propria pauta, a auto indisciplinada aqui tem mais duas dicas imperdíveis que surgiram durante a pandemia, sem ter compromisso com ela. O meu amigo Erasmo Car, não, péra. Meu amigo Renato Hermsdorff colocou no ar o The Renato Herms Show, um canal do YouTube  em que ele reparte seu vasto conhecimento e comprovada experiência de jornalismo especializado em audiovisual e  oferece informações, comentários e críticas sobre filmes, séries e quetais. Inteligência, conhecimento, humor e (por que não?) beleza te esperam no TRHS; confira. 

E a ideia esperta (e necessária) de falar com mulheres da minha Faixa Etária de Gaza, isto é, ao redor dos 50 anos, também com inteligência, leveza e acuidade não podia esperar a pandemia passar. Então a minha amiga Tina Lopes lançou o  @Fifitinah, saboroso já no título, que tem trazido informações relevantes, para além do coach (cruzcredo!) e demais obviedades rasas e promovendo lives que parecem bate papos no bar com as amigas – ou seja, algo muito mais legal que live. Novinhas e homens são aceitos e bem-vindos –  mas esqueçam os privilégios, por favor. Por enquatdo é um perfil no insta, mas se você vacilar a Tina Cérebro vai dominar o mundo! Eu, Pink, torço por isso.

Helê

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