Cardeais

Gosto demais de música e tenho com a música popular brasileira uma relação particularmente intensa. Sinto como se nela eu tivesse sido moldada; como se tivesse aprendido com ela todo o necessário para viver e suas variações (amar, sofrer, ressurgir, criar…). Muita coisa eu compreendi antes de entender; aquilo que eu ainda não tinha condições de saber eu guardei, e ao longo da vida fui recuperando, as peças juntando e finalmente fazendo sentido. Entre muitos poetas e músicos talentosos que temos – nesse quesito o Brasil é a definição de fartura – alguns são para mim como alicerces, base, estruturam meus afetos, minhas vivências, meu estar no mundo. Milton Nascimento é um deles.

Tenho lembranças muito antigas, que remontam aos meus 8, 9 anos, ouvindo os discos do meu primo Fábio – também ele um emepebista inveterado -, e os do meu irmão (um poço de conhecimento musical, capaz de esquadrinhar a carreira de seus artistas favoritos por fases, ciclos, influências e o que mais você imaginar). Como a Calcanhotto, eu presto muita atenção ao que o meu irmão ouve, e foi com ele que escutei pela primeira vez o “Clube da Esquina”, “Minas”, “Geraes”, “Caçador de mim”. Foi com ele que primeiro fui a Minas sem sair de Vila Valqueire, ouvindo Toninho Horta, Lô Borges, os menino tudo. Somos de um tempo em que os discos vinham com encartes que eram verdadeiras obras à parte – e os de Milton sempre foram bonitos, criativos, cuidadosos -; enquanto ouvíamos os LPs ficávamos lendo tudo do encarte, letras, ficha técnica, mensagens inesperadas. Quando encontrei essa camisa na Chico Rei, comprei uma pra mim e dei outra pro meu irmão para celebrar os meninos que fomos, nosso laço e o amor por Milton e por tudo o que ele nos deu, generosa e lindamente.

Milton – juntamente com Caetano, Gil, Chico, Bethânia, Gal – é um dos pontos cardeais da minha bússola existencial. Guia, orienta, dá régua, compasso, prumo e vista para escolher a rota, inventar caminhos, desbravar territórios, contemplar paisagens. Assistir ao show “A última sessão de música” ontem foi emocionante demais, eu diria mesmo brutal. Tudo embalado em beleza e primor: o cenário, o figurino incrível de Ronaldo Fraga, a banda impecável e Milton, nos atravessando de emoção e potência. Milton, como disseram, em toda a sua grandeza e fragilidade. A constatação de que os sonhos não envelhecem, mas nossos ídolos sim – e nós também. Que travessia, meus amigos, que travessia!

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E tudo isso, ainda por cima, apenas alguns dias depois de dizermos adeus à Gal Costa. Confesso que o que escrevi acima, sobre os pontos cardeais musicais da minha vida, provavelmente teria sido diferente antes de perdê-la. Seja por machismo, pela supervalorização dos letristas sobre os intérpretes, pela combinação dos dois fatores e outros mais, eu teria ficado só no quarteto masculino. Foi com alguma surpresa que, quando fui dar a notícia da morte dela para minha filha, a voz embargou e falhou no meio da frase. E passei o resto do dia, dos dias, na verdade, sentindo esse vazio imenso do silêncio da voz de Gal ecoando no meu peito. E me dei conta o quão dela eram as músicas dos quatro caras que eu tanto admiro. Muito do que eles fizeram ganhou nova proporção, brilho e consistência com a voz de Gal (e a de Bethânia). Percebi que muito do que eu creditava exclusiva ou principalmente aos letristas tinha o toque igualmente genial de Gal e seu canto ímpar, que eu imitava ainda criança, no tapete da sala, com um microfone improvisado.

No meu aniversário deste ano, comemorado no Bode Cheiroso – único dia em que acabou a cerveja em mais de 70 anos de estabelecimento – alguém fez um vídeo em que apareço, entre muitos desconhecidos feitos amigos, dançando “Festa no Interior”, essa música que foi hit carnavalesco embora fale de fogueira e São João. Na voz de Gal se encontravam todos, do interior, da cidade, da festa junina e do trio elétrico, amigos e desconhecidos, todos irmanados nas trincheiras da alegria.

Devo à Gal também uma aprendizagem sobre o feminino, sabe? Antes da canção de Joyce, Gal foi quem primeiro me ensinou o que é feminina – no cabelo, no dengo, no olhar, na maneira ao mesmo tempo altiva e suave de estar à vontade com o próprio corpo, onde quer que estivesse. Para uma menina insegura de cabelo cacheado e lábios grossos, no início dos anos 80, sem referências e incapaz de perceber beleza em si, a imagem daquela boca vermelha e da juba orgulhosa era libertadora, assim como a ideia de uma sensualidade absolutamente natural, que apenas era, sem se esforçar para ser nem se desculpar por isso.

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Eles partiram por outros assuntos. Muitos, mas no meu canto estarão sempre juntos, como escreveu Caetano.

De qualquer modo, seja inesperadamente como Gal, ou em noite de gala como Milton, eu não aprendi dizer a adeus.

Helê

PS: Nesta mesma semana de perdas partiu também Rolando Boldrin, outro assombro de talento, esse caipira ancestral, tio ou vô de todos nós.

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