Colaterais

Ando flertando com a possibilidade de voltar a estudar. Então antes de entrar num relacionamento sério com a Academia, aproveito a desobrigação de citar fontes e reunir quem concorde comigo para jogar ideias ao vento, displicentemente. (Também)Pra isso serve um blogue.

Estive pensando que no quanto a sociedade brasileira deve ao contingente afrodescedente da população – e eu nem estou falando das riquezas acumuladas a custa de nossos ancestrais (ouça o Projeto Querino, indique pra alguém, ouça de novo). Constatei que toda vez que os pretos avançam socialmente, levam consigo outros; nunca somos só nós – e só nós já seria mais da metade da população.

Estava pensando em lutas e conquistas relativamente recentes, como por exemplo, os quilombolas. Pelo que ouvi dizer (olha aí a vantagem de não ter responsabilidade acadêmica), o artigo da Constituição que garante às comunidades remanescentes de quilombo a posse de suas terras foi aprovado porque não havia compreensão do que isso significava realmente; acreditava-se que iria beneficiar meia dúzia de povoados, se tanto. Mas, nas décadas seguintes à promulgação do Artigo 68, vimos centenas de comunidades iniciarem a luta pela terra (já que a titulação definitiva envolve processos longos e complexos). Esse contingentes de diferentes tamanhos, formatos e modos de subsistências não surgiram com a lei, mas a partir dela passaram a poder exigir que o Estado as reconhecesse como detentores de direitos específicos. Na esteira dessa luta, deram legitimidade ao conceito de “comunidade tradicional”. Ao argumento “Ah, mas tem outras comunidades que não são quilombolas e também ocupam a terra a muito tempo!”, passamos a reconhecer também esses agrupamentos – pescadores, comunidades ribeirinhas e outros modos de viver comunitário. Essa é a impressão que tenho, que a partir da luta dos quilombolas outras comunidades tradicionais não-indígenas passaram a ser enxergadas como agrupamentos sociais relevantes com direitos próprios.

Coisa semelhante aconteceu com as cotas raciais. Falando de um ponto de vista absolutamente leigo, apenas como alguém que observa pela filha as mudanças na universidade hoje, alguém atenta ao cotidiano e às notícias: acho que nada provocou impacto maior na universidade e na sociedade brasileira nos últimos 20 anos que as cotas raciais. Uma discussão sempre em curso, uma medida a todo momento ameaçada mas cujos reflexos já são perceptíveis em várias áreas – e tendem a ser cada vez mais. E qual foi o primeiro ataque à ideia de cotas? “Ah, mas a questão não é apenas racial, tem os estudantes brancos da escola pública, os estudantes pobres…” A solução, na imensa maioria dos casos, não foi ignorar a raça, mas reconhecer e acolher também esses outros grupos vulneráveis – que, é preciso frisar, nunca haviam sido efetivamente considerados antes das discussões sobre cotas raciais. Além do ganho esperado, de um maior contingente de negros no ensino superior, as cotas provocaram efeitos colaterais positivos ainda a serem mensurados, mas que evidentemente ultrapassam a população negra.

Ou seja: a gente nunca avança sozinho.

De nada.

Carlos Vergara/Divulgação

Hele

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Sugestão de livro infantil

Compre para o seu filho, presenteie a afilhada, doe para uma biblioteca (eu acabei de comprar o meu na Amazônia e vou doar depois de ler).

Combata o racismo e a intolerância religiosa com ações.

Helê

Valeu, Glória

Ser uma mulher negra e jornalista hoje é ainda mais difícil que o de costume. Com a morte de Glória Maria perdemos uma referência, um exemplo, uma inspiração, um desafio – a gente queria ser como ela, mais que ela, diferente, mas ela era a medida, o sarrafo e o farol. Glória personifica para nós, pretas, aquele conceito que se tornou popular na campanha do Obama: foi preciso que ela andasse para que nós corrêssemos. A partir de Glória vieram Zuleide, Aline, Flavia, Maju, Ana Paula, Ana Beatriz e muitas outras. Depois de Glória ter sido por muitos anos a jornalista negra da televisão, finalmente elas podem ser contadas no plural (ainda que não o suficiente).

Eu nem achei que sentiria tanto essa perda, já não acompanhava a carreira dela nos últimos anos. Mas a imagem dela na tela da TV foi gravada há muito tempo na minha mente, e ao saber que não a veria mais, o rolo começou a rodar automaticamente, lembrando de muitas cenas, como ela com o James Brown ou denunciando o racismo que sofrera em um hotel caro da cidade. Mas o que mais me comoveu foi lembrar do que talvez tenha sido uma das primeiras reportagens de aventura da televisão brasileira, um embrião do que seriam as viagens dela no Globo Repórter: ela voando de asa delta no Rio de Janeiro. Cheia de medo e de coragem, participou de um voo duplo e quando já estava no ar disse com empolgação infantil: “Eu tô voando, gente! Eu tô voando igual um passarinho!”. Voa pro Orun, Glória; que Iemanjá te receba. Obrigada por tudo!

Helê

23 de agosto

Omar ibn Said

Se há leis que pegam e outras não, também há datas que não conseguem se fixar no calendário de eventos. Eu descobri ainda há pouco que hoje é o Dia Internacional da Recordação do Tráfico Negreiro e da sua Abolição, de acordo com a UNESCO, que celebra a data desde 1998. Em 23 de agosto de 1791 aconteceu no Haiti a primeira rebelião de independência nas Américas liderada pelos africanos escravizados. Como eu aprendi com o Projeto Querino (escuta absolutamente indispensável), essa revolução passou a ser o terror das elites dominantes, que temiam que os negros escravizados de outras colônias fizessem o mesmo. Séculos se passaram e ainda há o que temer, visto que no país que recebeu cerca de um terço de todas as pessoas traficadas no período das colônias, na cidade que recebeu um milhão dessas pessoas, ninguém fala sobre o Dia Internacional da Recordação do Tráfico Negreiro e da sua Abolição. Talvez porque a data fale explicitamente sobre recordar, e todo o esforço nacional foi o de esquecer, abafar e sepultar a escravidão e suas sequelas. Em vão: estamos aqui para recordar, repetir e elaborar*.

PS: Soube da data por um fio no tuíter (em inglês) falando sobre Omar ibn Said, um estudioso muçulmano que foi escravizado nos Estados Unidos e escreveu em árabe sua autobiografia.

*Eu não li o texto do Freud, mas só o título eu já acho poderosíssimo e certeiro.

Helê

Salve o Almirante negro, viva João Cândido!

Almirante João Cândido Felisberto (1880-1969), conhecido como

 

CE aprova projeto que inscreve nome de João Cândido no livro Heróis e Heroínas da Pátria

Talvez por ser, como já disse aqui, neta de marinheiros negros, talvez por ter conhecido essa história muito cedo por um dos meios que mais e melhor me formou, a música brasileira, a história de João Cândido me comove profundamente. Sinto-me impressionada com sua força e inconformada com a perseguição que até hoje, mais de um século depois, ele ainda sofre. Soube pelo twitter hoje de manhã sobre essa votação no Senado, e também sobre a posição abjeta da Marinha. Incapaz de impedir novamente a votação (já havia manobrado pelo adiamento anteirormente), enviou uma nota técnica tão pífia e desconexa quanto desculpa de jogador de vôlei homofóbico. Classifica a Revolta da Chibata como um “acontecimento triste” em que todos os envolvidos “tiveram omissões”, o que não justifica “exaltar ações de revoltosos”. Perderam uma excelente chance de ficarem calados, como apontou a dra. Rita Cristina, autora de um bem escrito artigo e também do tuíte que chamou minha atenção para o assunto (obrigada!).

Revolta da Chibata - Navio BA com Nascimento

Chocante que as forças armadas (assim mesmo, em minúsculas, que é o que fazem por merecer) sempre foram ao longo da história brasileira uma possibilidade de emprego dígno para a massa pobre e preta da população, vistas com respeito e admiração e, no entanto, as corporações têm por esses mesmos estratos sociais o desprezo das “elites”. A história de João Candido não temina com o fim da Revolta – a BBC Brasil tem uma extensa matéria sobre o Almirante, que foi traído, caçado, preso e atormentado, num comportamento aviltante para uma insitutição que se pretende zelosa dos mais altos valores da nação (Malditos Milicos!®) Perseguido até o fim da vida, até na sua morte, até ontem, quando a Marinha se deu ao trabalho de contestar um reconhecimento já estabelecido há muito tempo na sociedade, à revelia de sua opinião: João Cândido, o Almirante Negro, é um herói do Brasil. O Senado Federal só fez legitimar o que Aldir Blanc e João Bosco eternizaram em canção, e que encontra ressonância aqui no meu  DNA negro e marítimo.

Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais!

Helê

PS Portantíssimo: Ainda na editoria relações raciais no Brasil, o STF decidiu ontem (28/10/21) , que o crime de injúria racial se equipara ao racismo e, por isso, é imprescritível, ou seja, pode ser punível a qualquer tempo. Ou seja: Fogo nos racistas forever, sem prescrição!

®vinheta do Medo e Delírio em Brasília

Um alívio

Os leitores mais antigos aqui do blogue devem lembrar de um dos posts mais saborosos publicados aqui, no qual minha filha, então com seis anos de idade, expressou suas tendências feministas inatas. Foi durante a primeira posse de Barack Obama, e eu usei uma imagem para mostrar pra ela a importância do primeiro negro eleito presidente nos Estados Unidos.

Primeiro ela se espantou (“Só esse preto?”) e em seguida questionou: “e nenhuma mulher?!”

Corta para sábado passado, eu e a moça de quase 18 anos (!) comemorando Kamala Harris eleita vice-presidente.

Imagem
“A primeira mas não a última”

Os lacradores de plantão já estão levantando a lista de decisões condenáveis da ex- procuradora da Califórnia, junto com os iluminados que se esforçam em advertir que Joe Biden não é socialista (really?!). Eu só quero me permitir um minuto de alívio nesse ano implacável e celebrar sim, a ascensão de uma mulher preta a um posto de tamanha visibilidade. Porque representatividade não é tudo, mas importa à beça.

Entendedores entenderão

E, tão ou mais importante, vamos saudar também a derrota da deselegância, da brutalidade, do racismo, da xenofobia e do machismo predador representados pelo atual presidente. Both of them.

Helê

Menos um Mais Velho

John Bazemore/AP

Porque, como C. me ensinou, “a diáspora é um deslocamento definitivo”, a despedida de um grande de lá ecoa também aqui. Mesmo um país cada vez mais tensionado – com uma pandemia descontrolada (como aqui) e uma campanha eleitoral em curso – parou para render justas homenagens a um grande, o deputado John Lewis. Um defensor dos direitos civis, o mais jovem orador da marcha de Um Milhão de Negros em Washington – a do “I Have a Dream”; discípulo e amigo de Martin Luther King, Lewis viveu um dos papeis mais difíceis para um revolucionário: o de resistir ao tempo e permanecer relevante.

A CNN publicou uma impecável galeria de fotos do funeral. A que abre este post, com seu corpo cruzando pela última vez a ponte em Selma, me emocionou profundamente. Oprah, que o reverenciou diversas vezes em vida, lembrou que, entre as coisas que esse homem que fez História não dispensava estava a canção “Happy”, de Pharrel Williams: “It has the ability to lift my spirits and touch my being and soul.”

E encontrei um tuíte de palavras simples mas grandiosas – sobretudo ditas por alguém com um trajetória tão longa e rica – que podem nos servir nesse momento em que não podemos dispensar “words of wisdom”. Esses três instantâneos de John Lewis eu deixo aqui, como registro, despedida e homenagem.

Helê

Há vagas

Era pra ser apenas mais uma mensagem num grupo de oportunidades de trabalho para jornalistas. Enviaram  o anúncio de uma vaga que pedia candidatos negros ou negras. Pouco tempo depois, alguém enviou a seguinte mensagem: “Estou indignada. Se a pessoa não for negra não é qualificada? Não conhece de cultura negra? AFF!” Logo depois precisei desabilitar as notificações do grupo, as mensagens não paravam, num fluxo constante e implacável: a Indignada foi contestada, com maior ou menor delicadeza  e paciência, por todos os que se manifestaram. Se alguém concordou com ela, calou. Eu fiquei acompanhando: em tempos de quarentena toda treta é distração. Sem me pronunciar, porque tenho preguiça de educar branco – eles que lutem.

A Indignada  tentou responder. A certa altura disse, entre outras coisas, “trabalho e já trabalhei com vários negros, extremamente competentes” (aos berros, utilizando maiúsculas) . Que é outra maneira de dizer “nada contra, tenho até amigos que são”. Apanhou mais que Judas no sábado de Aleluia (essa é velha, hein? Eu também.). Mas “apanhou” sem baixaria, sendo contestada com vários níveis de argumentação. Algumas até bem elaboradas, como a que falava sobre o “pacto narcísico da branquitude”. Não houve xingamento, ela foi chamada apenas e tão somente de racista – errado não tá. Duas pessoas sugeriram que a Indignada deixasse o grupo – o que ela acabou fazendo, menos de uma hora depois da mensagem original, sem dizer adeus. A esmagadora maioria (incluído o moderador do grupo) apoiou os requisitos da vaga e condenou a postura da Indignada.

Eu fiquei surpresa com a força e a unanimidade com que ela foi rechaçada.  Fosse uns anos atrás (não muitos), teria acontecido o oposto: o anúncio, se houvesse, seria mais contestado que defendido. E a composição do grupo não justifica essa reação; jornalista não é mais conscientizado que, sei lá, um engenheiro civil formado (ironia intended). O episódio me parece um sinal de que houve alteração nas relações raciais no Brasil e na compreensão de suas nuances, impasses, forças. Tenho a impressão de que certo discurso, antes restrito ao movimento negro e à academia, transbordou para outros espaços. Estamos inegavelmente mais  conscientes e vocais. Aturamos menos e falamos mais, muito mais  – e melhor. E enquanto adquirimos novos instrumentos  e lapidamos a retórica, os brancos ainda recorrem ao pueril e  rudimentar “tenho até amigos que são”. Sofistiquem-se: deixem de ser racistas.   

Arte de Temi Coker, reproduzida  no Pinterest

Helê

Projeto

Para a nossa newsletter de ontem escrevi uma ou duas linhas boas que não quis deixar restrita aos assinantes. São daquelas muitas que surgem durante a escrita, num fluxo direto: cabeça, mãos, teclado e ôpa! de onde veio essa ideia que eu não tinha pensado antes? (Mais uma razão para receber a nossa news: somos pressionadas a escrever ao menos uma vez por semana pelo motor mor do jornalistmo, o prazo. E a pressão às vezes é uma boa editora).

Falamos na news sobre a pauta incontornável desde que o assassinato de George Floyd ganhou as redes sociais e a mídia: o racismo e o extermínio da população negra. A curva da nossa indignação atingiu seu pico e levou às ruas milhares de americanos e também outros cidadãos do mundo. Ainda vivemos todos ameaçados pelo novo coronavírus – em maior o menor grau, variando de acordo com a competência e obtusidade de cada chefe de estado -, mas não foi possível adiar. Diante da brutalidade policial exercida lenta e deliberadamente, sem um traço de constrangimento ou preocupação, a pandemia que vitimou mais de 100 mil americanos pareceu menos letal que a truculência repressiva do estado. Hoje, o resultado da autópsia de Mr. Floyd indicou que ele estava infectado com o vírus da Covid-19, mas nesse caso a doença foi uma comorbidade, entre tantas outras, para a causa mortis que adoece e mata há mais tempo: o racismo.

Foto: Nelson Almeida/GettyImages

O Brasil, que se esforça pra ser sempre o melhor pior, consegue tornar ainda mais dramática a questão com uma absurda lista de crianças e jovens negros assassinados pela ação do aparato policial militar. A quem, aliás, não se pode acusar de incoerência: foi constituído originalmente para proteger a propriedade e as elites, e se mantém fiel aos propósitos fundadores, utilizando em suas hostes membros das mesmas classes que são treinados a abater.

Photo by: Miami- Dade Corrections

Talvez por isso as cenas que mais têm me emocionado nas manifestações americanas são aquelas em que policiais demonstram apoio aos manifestantes. Os que se ajoelham, no gesto ressignificado por Kaepernick, os que ouvem as pessoas, os que garantem a segurança delas mais que as propriedades, os que abraçam. Aqueles que, mesmo que momentaneamente, rejeitam anos de treinamento, o privilégio da impunidade e da força e recuperam sua humanidade. Talvez seja preciso começar por aí a desarmar esse monstruoso mecanismo tão bem azeitado ao longo da história. Ou a gente vai continuar, como acertadamente definiu Emicida, “por nossa conta e risco nesse grande projeto de matar preto que é o Brasil”.

Helê

À luz

Eu não assisto BBB há umas 19 edições. Entre vários motivos, porque acho chato mesmo. Então, pelas minhas próprias regras, não deveria falar sobre algo que não conheço. Entretanto falarei, amparada em uma das regras magnas desse blogue (a do calaalabocajámorreu), e porque muito pouca gente nesse país quarentenado ficou alheia aos desdobramentos do programa esse ano. Minha filha, que nunca havia assistido antes, pegou o bonde no meio e foi com ele até o final; ontem soltou a frase que definiu seu envolvimento: “Ainda bem que acabou, não aguentava mais gostar de BBB”.

Se bem que não é exatamente sobre o programa que quero falar. Acontece que a popularidade incontestável do Babu e a surpreendente vitória da Thelma me fizeram lembrar uma teoria que elaborei há algum tempo, defendida na Universidade Mesa de Bar, sobre o que eu chamava de “negritude difusa”, uma propensão popular a torcer e apoiar negros ou aspectos a eles relacionados, em certas situações – embora sem explicitar que era a etnia que estava em jogo.

A primeira vez que pensei sobre isso foi na Copa de 90, quando o Brasil se encantou com a seleção de Camarões de Roger Milla. Eu sei que você não era nascido, bebê, então deixa eu te contar: eliminados pela Argentina, os brasileiros adotaram a seleção camaronesa. Passamos a acompanhar e torcer de verdade, de juntar no bar ou fazer churrasco pra vê-los jogar. Lembro de ter ido assistir ao jogo definitivo na casa de amigos e, no trajeto que fiz entre Vila Valqueire e Laranjeiras – que é praticamente cruzar a cidade -, vi várias janelas com bandeiras improvisadas de Camarões, feitas com qualquer pano que tivesse as cores do país. E na hora do jogo, os gritos e comemorações foram semelhantes àqueles ouvidos nos jogos do Brasil. Um fenômeno desses é difícil de explicar; contribuiram para isso o futebol solto e ingênuo dos africanos, a simpatia de Milla, a possibilidade improvável de vitória de um underdog. Mas também torcíamos por irmãos africanos, pelos negros – embora essa correlação nunca fosse explicitada.

Muitos anos depois, um amigo trabalhou diretamente com o então ministro do Supremo Tribunal de Federal, Joaquim Barbosa. Acompanhou-o em seu momento de maior visibilidade e tensão. Esse amigo me contou sobre as pressões sofridas, os constrangimentos discriminatórios (dos quais um negro nesse país não escapa nem mesmo sendo presidente do STF), várias histórias. Mas as mais impressionantes e comoventes vinham das camadas mais humildes da população, que viam Joaquim com um misto de orgulho, respeito e esperança. Uma relato inesquecível diz respeito a uma visita do então ministro a um presídio no norte do país. Em um ambiente hostil por natureza, especialmente para autoridades, Joaquim Barbosa foi tratado com reverência, como “o cara”, como aquele que, apesar da origem humilde, “deu certo”, ascendeu honestamente. Também nesse caso, vários fatores podem justificar a popularidade de Joaquim, mas a classe, sozinha, não inspiraria a mesma admiração sem o componente racial. Nesse episódio da cadeia, os detentos ofereciam as mãos para serem tocados pelo ministro, e diziam coisas como: “O senhor colocou branco rico na cadeia, antes a tranca era só pra gente”. Barbosa era – e talvez ainda seja – visto como um “negro que deu certo”, e além disso foi destemido no enfrentamento aos poderosos (que nesse país é também um sinônimo para brancos).

Tudo isso é digressão de botequim, como avisei de início, não há ciência alguma no que digo. É só uma Teoria de Mesa de Bar que talvez não se sustente depois da 20ª edição do BBB. Porque não há nada de difuso na popularidade do Babu (tecnicamente, o 4º colocado, mas reconhecidamente o vencedor dessa disputa) e na inesperada vitória da Thelma. Raça e racismo estiveram em pauta ao longo de boa parte do programa (que, a propósito, no ano passado premiou uma pessoa identificada por grande parte da audiência como racista). As redes sociais hoje estão repletas de pessoas comemorando a vitória de uma mulher negra, e embora o BBB tenha destacado a “narrativa das mulheres” (um jeito que a globo inventou de falar de feminismo sem ousar dizer o nome), foi a raça ocupou um lugar inédito nos corações e mentes dos espectadores, e sobretudo na fala, deixando a clandestinidade, o lugar do implícito e do subentendido.

A desigualdade para os negros em geral e para as mulheres negras em particular amanheceu igualzinha, não tenho dúvidas. Mas talvez tenhamos ganhado uns pontos nas trincheiras do discurso. E uma batalha fica mais franca e justa quando podemos nomear com precisão quem são nossos inimigos e nossos aliados, e porque fazemos nossas escolhas.

Helê

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