Posted on Quinta-feira, 2 Fevereiro, 2023 by Duas Fridas
Ser uma mulher negra e jornalista hoje é ainda mais difícil que o de costume. Com a morte de Glória Maria perdemos uma referência, um exemplo, uma inspiração, um desafio – a gente queria ser como ela, mais que ela, diferente, mas ela era a medida, o sarrafo e o farol. Glória personifica para nós, pretas, aquele conceito que se tornou popular na campanha do Obama: foi preciso que ela andasse para que nós corrêssemos. A partir de Glória vieram Zuleide, Aline, Flavia, Maju, Ana Paula, Ana Beatriz e muitas outras. Depois de Glória ter sido por muitos anos a jornalista negra da televisão, finalmente elas podem ser contadas no plural (ainda que não o suficiente).
Eu nem achei que sentiria tanto essa perda, já não acompanhava a carreira dela nos últimos anos. Mas a imagem dela na tela da TV foi gravada há muito tempo na minha mente, e ao saber que não a veria mais, o rolo começou a rodar automaticamente, lembrando de muitas cenas, como ela com o James Brown ou denunciando o racismo que sofrera em um hotel caro da cidade. Mas o que mais me comoveu foi lembrar do que talvez tenha sido uma das primeiras reportagens de aventura da televisão brasileira, um embrião do que seriam as viagens dela no Globo Repórter: ela voando de asa delta no Rio de Janeiro. Cheia de medo e de coragem, participou de um voo duplo e quando já estava no ar disse com empolgação infantil: “Eu tô voando, gente! Eu tô voando igual um passarinho!”. Voa pro Orun, Glória; que Iemanjá te receba. Obrigada por tudo!
Posted on Quarta-feira, 24 Agosto, 2022 by Duas Fridas
Duas surpresinhas e uma leve obsessão
“Anatomia de um escândalo” é uma série muito bem interpretada, que parece que vai ser sobre político infiel, casamento e tal (uma coisa assim meio The good wife), mas é, acima de tudo, sobre consentimento. Sobre a supremacia masculina tão entranhada nas sociedades em que vivemos que todas nós mulheres podemos nos identificar e mesmo nos reconhecer nessa minissérie britânica classe alta branca. Confira.
“Hacks” é outra surpresinha. Parece que vai ser sobre uma comediante decadente e uma roteirista de comédia arrogante. E é, também, mas não apenas. Porque a humorista sênior tem seu valor, ainda enche o teatro (mesmo que queiram diminuir suas apresentações). E a jovem escritora tem uma dose de arrogância e sabe-tudismo típica da idade, mas pode ser uma pessoa compassiva. E cedo na série a gente
saca o que elas demoram um pouco mais a perceber: que são duas mulheres tentando vencer in a men’s world , o que as une, ainda que queriam se repelir mutuamente. E a gente vai revezando simpatias – uma hora amando Deborah Vance, outras nem tanto; em vários momentos torcendo para Ava, noutros querendo que ela se dane. Tudo recheado de diálogos excelentes, atuações idem e bons personagens secundários.
Sobre Better Call Saul eu direi apenas que: considerava Walter White um personagem complexo até conhecer Saul Goodman/Jimmy McGill, que tem mais camadas que uma cebola. Ou que o Shrek. E depois de seis temporadas de suspense, ação, intrigas criminosas, fotografia espetacular, conflitos familiares e atuações impecáveis, confirmei no último capítulo o que eu já desconfiava: que estive acompanhando uma bela e trágica história de amor.
Posted on Domingo, 7 Novembro, 2021 by Duas Fridas
Há coisa de uns meses atrás (talvez mais, como medir o tempo com precisão depois de um ano e oito meses de infinitena?) ouvi falar no nome dela pela primeira vez, na tela inicial da GloboPlay. Pela ênfase dada à divulgação da série documental, parecia alguém importante. Dividida entre a curiosidade por saber do que é popular e a preguiça de conhecer coisas novas, fui vencida pela segunda. Em pouco tempo, os destaques do serviço de streaming mudaram, a fila andou, enfim, ela saiu de novo do meu radar.
Sexta-feira passei o dia concentrada no trabalho, e só no fim da tarde, em uma breve olhada nas mensagens, fiquei sabendo: primeiro de um acidente ao qual ela supostamente havia sobrevivido; depois, a retificação e a confirmação da tragédia.
Mas só aos poucos fui entendendo o tamanho que tinha Marília Mendonça. E minha ignorância diz muito sobre mim, sobre o quanto minha percepção do mundo é limitada por uma experiência de vida meio-intelectual-meio-de-esquerda (e também meio-MPB-meio-rock’n’roll), mas também diz muito sobre as bolhas e o quanto é fácil se estar completamente alienada de um fenômeno popular dessa magnitude, sem nem ao menos saber que se está por fora.
No programa Lady Night, em 2018
Hoje voltei na GloboPlay e a série da Marília estava novamente em destaque. Mesmo que não estivesse, eu procuraria por ela — entrei no streaming para isso. Assisti os quatro episódios de uma só vez e fiquei ainda mais espantada com o fato de ter, durante anos, veja bem, anos, pois pelo menos desde 2015 essa mulher é um sucesso retumbante, ignorado sua existência. Nem entro no mérito de gostar ou não de suas músicas (não é meu estilo musical preferido, mas feminejo é mais divertido que o sertanejo universitário e outros subgêneros, então sim, curto levemente, digamos assim). O ponto é sobre como é possível que pessoas bem informadas — outras como eu admitiram, nos últimos dias, o mesmo desconhecimento — estarem totalmente desatentas a um fenômeno desta proporção. Na época da comunicação de massas, se um artista alcançasse o topo, como ela alcançou, todos saberíamos.
Em 2017, na Expo Araçatuba
Essa moça bonita, carismática, de voz potente e energia incansável, se foi cedo demais, mas deu tempo de deixar sua marca na história musical de um país que tem grandes nomes nessa arte. Assistindo a série, aprendi muito sobre quem ela era: acima de tudo, alguém que se conectava com as pessoas de uma maneira única. E isso não é pouca coisa, especialmente em tempos tão dominados pelo narcisismo. Vai fazer falta.
Posted on Segunda-feira, 4 Outubro, 2021 by Duas Fridas
“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, disse Oscar Wilde no ensaio A Decadência da Mentira, indicando que o papel da “verdadeira” arte é muito mais indicar caminhos que reproduzir costumes de uma época.
A série documental 1971 não cita meu dândi favorito, mas a premissa é a mesma. O subtítulo, tanto em inglês quanto em português, é “o ano em que a música mudou o mundo”. São oito episódios que mostram um momento bem peculiar da história do século XX: os míticos “anos 60” tinham terminado, os Beatles tinham se separado, the dream is over era o mote que resumia o espírito do tempo. E realmente, né, se a gente pensa em momentos históricos da música… dificilmente o ano de 1971 seria apontado como memorável.
Mas o documentário mostra um recomeço. Para os Rolling Stones, por exemplo, foi um ano decisivo. Eles poderiam ter se desintegrado em muito sexo, muitas drogas e pouco rock’n roll. Mas se mandaram para a Côte D’Azur, depois para Los Angeles, e o resultado foi o álbum Exile on Main St., que dispensa apresentações. Acha pouco? É pouco mesmo. O ano de ’71 teve muito mais: John e Yoko lançando um libelo pela paz que ultrapassou o flower power e virou um hino mainstream. (Sim, Imagine foi lançada naquele ano.) Marvin Gaye, James Brown, Sly and the Family Stone, Tina e Ike Turner — vai vendo o naipe dessa rapaziada — foram contemporâneos de Gil Scott-Heron, um cara não muito conhecido que deixou como legado uma frase profética: “the revolution will not be televised” (que, na era das redes sociais, ganhou todo um novo significado).
Mi novecentos e setenta e um teve também Iggy Pop, Alice Cooper e a morte de Jim Morrisson. Um inglês meio esquisitão foi para Nova York, conheceu Andy Warhol… e assim nasceu o camaleão David Bowie.
Meu episódio favorito é o que tem foco nas mulheres: Joni Mitchell (que não curto muito) e Carole King, a quem eu nunca tinha prestado muita atenção. O álbum que ela lançou em 1971, Tapestry, foi uma fábrica de hits. Você provavelmente conhece bem mais da metade das faixas.
Esse álbum é uma pérola. Apenas ouça.
Cinquenta anos depois, 1971 ainda ressoa, ainda toca nas nossas playlists, e, infelizmente, seu legado ainda desperta reações violentas contra nossa turma. We shall prevail.
Posted on Segunda-feira, 21 Junho, 2021 by Duas Fridas
Depois de um longo período sem conseguir me concentrar em nada, nem mesmo no escapismo catártico da ficção, aos poucos estou voltando a consumir alimentos para o espírito. #alertadeclichê
Eu sempre fui devoradora de filmes, séries, livros, e, mais recentemente, podcasts. Por isso, me preocupava um pouco minha total incapacidade de assistir mais de 20 minutos de um filme, minha total falta de vontade de começar uma série por saber que não daria conta de ir adiante, e, claro, minha total falta de foco para ler mais de duas páginas de um livro. Acho que muita gente está assim também, e ter companhia me deu algum conforto, claro. Mas o que realmente me deixou satisfeita foi conseguir, aos poucos e sem explicação, voltar a encontrar prazer nas coisas que sempre amei.
Como gosto de anotar o que estou vendo e ouvindo, reparei que nas últimas semanas assisti vários filmes passados mais ou menos na época da II Guerra Mundial — um pouco antes, durante, um pouco depois. (Eu sempre fico impressionada com a capacidade da indústria cultural de produzir infinitas obras sobre os horrores do nazismo. Já houve uma moda de filmes sobre a Guerra do Vietnã, que aconteceu bem depois, e a fase passou. Mas a II Guerra continua rendendo assunto até hoje. E faz sentido: depois de ler Hannah Arendt eu entendi.)
***
Antes de chegar a um conclusão, se é que chegarei, deixo o registro dos filmes que vi (e um que revi) nas últimas semanas sobre esse tema.
Operação Final: agentes do serviço secreto israelense vão à Argentina para capturar e retirar do país o criminoso de guerra Adolf Eichmann (cujo julgamento inspirou outra obra da Hannah Arendt que ainda não li). A operação é bastante questionável do ponto de vista do Direito Internacional (talvez flagrantemente irregular, mas sei lá eu). Mas seus resultados concretos e simbólicos são, esses sim, inquestionáveis.
O Fotógrafo de Mauthausen – espanhóis derrotados na Guerra Civil foram tornados apátridas pelo ditador Franco, e enviados ao campo de concentração de Mauthausen, na Alemanha. Lá, um deles se torna assistente do oficial nazista que fotografava as atrocidades cometidas. Conforme os prisioneiros percebem que o fim da guerra se aproximava, alguns deles se unem na tentativa de preservar os negativos que serviriam (e serviram) de provas nos tribunais do pós-guerra. O filme é baseado em acontecimentos reais, e algumas cenas reproduzem fielmente as fotos tiradas na época.
A Escavação – pouco antes da guerra começar (a Inglaterra já era sobrevoada por ameaçadores aviões alemães), uma viúva, proprietária de terras, decide escavar um terreno onde, segundo a lenda local, havia coisas antigas debaixo da terra. Ela contrata um arqueólogo amador, eles fazem uma descoberta muito importante e o resto é história (e História). A trama não é lá grande coisa, mas as imagens da escavação são sensacionais e valem o filme.
Lida Baarová – em meados da década de 1930, em plena ascensão do nazismo na Alemanha, uma atriz de cinema tcheca, já famosa em Praga, se muda para Berlim na tentativa de ser bem sucedida por lá. Na época, Berlim era um polo cinematográfico que competia com Hollywood — e para a qual perdeu talentos como Fritz Lang e Marlene Dietrich, fato citado em uma das cenas. (Aliás, eu só fiquei sabendo mais sobre essa era de ouro do cinema alemão quando visitei o Museu do Cinema berlinense.) Bom, pra variar, I digress. Voltando ao filme: a atriz Lida Baarová de fato consegue fazer sucesso na capital alemã, tanto que chama a atenção do Führer em pessoa e do poderoso ministro da Propaganda Joseph Goebbels, de quem torna-se amante. A história de Lida é uma história de decisões erradas.
A sociedade literária e a torta de casca de batata – logo após o fim da guerra, uma escritora londrina conhece, através de cartas, um grupo de amigos moradores da ilha de Guernsey, que chegou a ser ocupada pelo exército alemão. Deu vontade de rever um confort movie, escolhi esse. Apesar do tema de guerra, é uma história doce sobre como o amor e a amizade podem surgir em momentos (e por pessoas) que não se espera. O livro, um romance epistolar delicioso, já foi tema de post da Helê.
***
Bom, depois dessa enxurrada de filmes mais ou menos sobre o mesmo tema, alguns mais delicados, outros bastante pesados, me peguei pensando por que será que estou tão interessada na II Guerra Mundial, que nem é um período histórico pelo qual eu tenha uma preferência especial.
E o mais estranho: a vida real está tão difícil, tão complicada, que eu deveria estar buscando conforto na ficção, eu acho. Em vez de assistir a coisas ainda mais horríveis.
Mas talvez seja isso: talvez, de algum forma, saber sobre coisas horríveis pelas quais a humanidade já passou, conhecer aquilo a que sobrevivemos, esteja me ajudando a lidar com nossos tempos duros. Eu ainda quero acreditar que nós somos ação, eles são reação. Eles passarão, nós passarinho.
Posted on Quinta-feira, 10 Junho, 2021 by Duas Fridas
O tempo do apartamento é tão fugaz (…) me dá tua mão mascarada me leva daqui/prum tempo que for qualquer tempo que for pra fora desse apartamento/que o tempo aprisionou
Foi totalmente por acaso, procurando um som pra me acompanhar no home office, que descobri o novo álbum do Marcos Sacramento, chamado “Crônicas do apartamento 20“. Deduzi que tratava-se de canções da pademia, sons da quatentena, e era exatamente isso. Sacramento fala de um tempo que não é mais tempo, que não sobra mais, de estradas sem caminhões e brisas sem aviões. Tempos duríssimos.
Estou tão só e demora esta solidão sobrehumana Tão só, tão só que mesmo os gatos de casa/ mesmo deles emana um torpor exageradamente solitário
Eu costumava ter certa desconfiança com obras artísticas que cujo tema fosse algo muito próximo. Quando vi, por exemplo, a Netflix anunciando uma série chamada “Distanciamento social“, torci o nariz. Achava que não é possível retratar tão bem algo sem alguma distância do que está em foco. Mas a curiosidade foi maior que o pré-concebido, e tive uma surpresa agradável e positiva com a série.
Os episódios são independentes, praticamente pequenos curtas e, como pode acontecer nesses casos, a qualidade varia entre eles. Mas de um modo geral, vale a pena assistir. Há algumas atuações excelentes, tramas ora divertidas, ora realmente dramáticas, e a sensação persistente de familiaridade. Quase todos nós vivenciamos em algum grau uma (ou muitas) daquelas situações. O pai que tem que cuidar da filha enquanto a mãe enfrenta a Covid isolada no quarto, a cerimônia funeral on line, adolescentes paquerando via web.
A familiaridade incomoda em vários momentos, pode ser reconfortante em outros; o fato é que não ficamos alheios à tela: também é mais difícil assistir se estamos envolvidos no enredo.
A noite está parada, abalada, abalda parou. A noite está fechada. A vida foi travada tudo é anormal
As crônicas cantadas de Sacramento despertam sentimentos semelhantes. Da varanda de seu apartamento em Santa Teresa, com um vista privilegiada e ampla do Centro do Rio, ele registra silêncios e sinais, angústias, reflexões, lembranças e desejos de alguém acostumado ao palco e à experiência coletiva da música obrigado a se isolar. Impossível não se identificar em vários momentos e versos. E, como todos já descobrimos, nem só de tristeza e melancolia se vive uma pandemia. São vários os ritmos visitados por Sacramento, e é um samba (sempre ele!) que carrega os versos mais luminosos e esperançosos. Lembrando ser “um samba que já nasce em sacrifício – pois o vício de sambar é ancestral”, manda o recado, papo reto:
Gritam nebulosas do espaço que a vida é infinta, que ela vai continuar!
Procurando as letras das canções para escrever o post, emcontrei o site do cantor e compositor e lá soube que ele fez também uam álbum visual, disponível no YouTube. Igualmente instigante, inteligente e bem feito. Marcos Sacramento fez uma margarita ótima desse limão azedíssimo que estamos tomando forçosamente há mais de um ano. Vale muito a pena provar.
***
Uma outra iniciativa que é cria direta da pands é o Museu do Isolamento, perfil no Instagram que publica trabalhos artísticos que abordam…isso tudo que tá aí. Tem humor, crítica, raiva, bom gosto, de tudo um pouco, e quase tudo muito intereressante, criativo e…familiar. De novo uma sensação de conexão com o outro que eu não sei quem é mas que está vivendo coisas muito intensas e parecidas. Também acho que vale a visita.
E, desviando da minha propria pauta, a auto indisciplinada aqui tem mais duas dicas imperdíveis que surgiram durante a pandemia, sem ter compromisso com ela. O meu amigo Erasmo Car, não, péra. Meu amigo Renato Hermsdorff colocou no ar o The Renato Herms Show, um canal do YouTube em que ele reparte seu vasto conhecimento e comprovada experiência de jornalismo especializado em audiovisual e oferece informações, comentários e críticas sobre filmes, séries e quetais. Inteligência, conhecimento, humor e (por que não?) beleza te esperam no TRHS; confira.
E a ideia esperta (e necessária) de falar com mulheres da minha Faixa Etária de Gaza, isto é, ao redor dos 50 anos, também com inteligência, leveza e acuidade não podia esperar a pandemia passar. Então a minha amiga Tina Lopes lançou o @Fifitinah, saboroso já no título, que tem trazido informações relevantes, para além do coach (cruzcredo!) e demais obviedades rasas e promovendo lives que parecem bate papos no bar com as amigas – ou seja, algo muito mais legal que live. Novinhas e homens são aceitos e bem-vindos – mas esqueçam os privilégios, por favor. Por enquatdo é um perfil no insta, mas se você vacilar a Tina Cérebro vai dominar o mundo! Eu, Pink, torço por isso.
Posted on Segunda-feira, 27 Julho, 2020 by Duas Fridas
Daí que 1988 não é só outra época; talvez seja outro planeta.
Rever uma novela tão emblemática como Vale Tudo é, antes de qualquer coisa, uma experiência no mundo bizarro. No plano material, cada cena é um mergulho em uma indagação sobre como vivíamos “sem” tal coisa, ou “com” tal coisa. Telefones de fio (em um dos cenários o telefone tem o fio todo enrolado, coisa que deixava meu pai maluco), videocassetes, disc-lasers (era assim que chamávamos os moderníssmos CDs no final dos anos 80, crianças), computadores grandalhões e disquetes, máquinas de telex (!), até os eletrodomésticos pesadões e quadradões, tudo me espanta. Os carros, meu Deus, os carros. 1988 foi antes do Collor dizer que os carros brasileiros eram todos umas carroças, ofendendo a indústria automobilística nacional e os defensores da reserva de mercado (é, crianças, pesquisem). Spoiler alert: eram mesmo. (Voltarei ao Collor daqui a pouco.) 1988 foi antes de o fax chegar a Brasil. E não me façam começar a falar de roupas e penteados, porque né?
Ombreiras, minha gente, isso já existiu.
Não sei se na época era claro para mim, mas Vale Tudo parte de uma premissa (e tudo na novela gira em torno dela): a desonestidade estrutural da sociedade brasileira. A trama central se baseia nas interpretações diferentes que Raquel (a mãe) e Fátima (a filha) fazem dessa constatação inicial. Raquel acha que se todos são desonestos, cabe a ela (e a todos que a cercam) corrigir isso por meio de ações estritamente éticas. Já Fátima entende que se todo mundo torce as regras para se dar bem, a solução é abandonar qualquer senso ético como única forma de sobreviver nesse mundo cruel.
A música-tema tem um dos versos mais contundentes do rock nacional, de autoria de Cazuza: “o meu cartão de crédito é uma navalha”…
Assistir a esse dilema tendo como pano de fundo a conjuntura de 2020 dá margem a muitas reflexões.
Primeira: a novela acabou em janeiro de 1989. Em novembro, tivemos a primeira eleição direta para presidente em 29 anos. E elegemos (opa, nós quem, cara-pálida?) Fernando Collor de Mello, que baseou sua campanha na ideia de caçar “marajás”, funcionários públicos que ganhavam super salários sem trabalhar. Fala-se muito da influência das novelas da época sobre a mentalidade nacional que resultou em sua vitória, especialmente as exibidas nos meses da campanha, como O Salvador da Pátria e Que Rei Sou Eu?, mas a ideia de uma “faxina ética” direcionada apenas (ou principalmente) à classe política, olhando em retrospectiva, parece ter sido uma simplificação tremenda.
Segunda: em Vale Tudo, a corrupção está em todas as instâncias da sociedade brasileira, e ali são retratadas principalmente as mais cotidianas, com um foco especial na corrupção no setor privado: um dos vilões se dedica a desviar recursos da empresa familiar. Mais de trinta anos depois, parece que nosso foco se desviou para o “andar de cima”, a política partidária e institucional, e aquele papo sobre como a corrupção começa com quem molha a mão do guarda (que, diga-se de passagem, é outra simplificação besta, mas enfim, é um ponto de partida) foi praticamente esquecido.
Terceira: a parte da novela que fala de crise econômica e desemprego, tirando as questões ligadas à inflação, é tristemente atual. No entanto, um detalhe me chamou a atenção. A moeda era o cruzado, e tudo custava milhares de. Mas, para conseguir acompanhar os valores das coisas, percebi que tirando um zero de cada preço eu chegaria mais ou menos ao tanto que elas custariam hoje. As únicas exceções foram a diária da faxineira, que pela minha equivalência tabajara hoje vale 3 vezes mais (alvíssaras!), e o câmbio do dólar, que hoje, bizarramente, mesmo com a taxa absurdamente alta, seria seis vezes mais caro, se fosse mantida a proporção da época em relação aos preços das outras coisas.
Quarta: a exemplo de boa parte das obras de ficção, e não só as brasileiras, os vilões são pessoas muito mais interessantes. Até aí, nada de novo. Acho essa questão bem problemática, e isso talvez seja assunto para outro post. Mas em Vale Tudo os mocinhos de modo geral são muito chatos, e a suposta heroína, Raquel, é insuportável na sua unidimensionalidade — seus chiliques e suas lições de moral parecem, vistos de hoje, um ensaio canastrão para sua meteórica e constrangedora passagem pelo governo federal. Parece que Regina Duarte acreditou na personagem que interpretou três décadas atrás, e comprou aquele discurso fajuto de “vamos moralizar o país”. Raquel, a chata, com certeza seria uma bolsomonion (e pior, uma “tia do zap”) em 2020.
Quinta: há, no entanto, honrosas exceções a esse padrão de mocinhos unidimensionais, e elas se encontram principalmente nas personagens que encarnam os temas “polêmicos” que toda novela que se preza precisa abordar. A Heleninha Roitman que vejo hoje me parece bem mais interessante (na época eu a achava chata, provavelmente por conta da interpretação excessivamente dramatizada de Renata Sorrah, que eu não curto). A relação de Laís e Cecília marcou época, mas é engraçado ver como elas eram apresentadas como “amigas” e ninguém falava diretamente sobre o fato de obviamente serem um casal — até que uma delas morre e a questão da herança entra no meio. Tem sido interessante lembrar que estávamos saindo de um longo período em que produtos culturais e artísticos sofriam censura prévia, e que de repente se podia falar de certos assuntos. No Brasil de Damares, não sabemos até quando.
Há outra muitas reflexões possíveis, claro. Se quiser, deixe as suas nos comentários. Eu por aqui fico pensando que na verdade, fora cenários e figurinos, o Brasil de 2020 é de novo tristemente parecido com o de 1988.
Posted on Sexta-feira, 24 Julho, 2020 by Duas Fridas
“Breaking Bad” estreou em 2008 e terminou em 2013; suspeito que não há nada sobre a série que não tenha sido dito. Apesar disso, escrevo – para registrar as impressões que causou em mim, para trocar figurinha com outros que viram, e também para tentar me despedir de Válter (como eu chamo Walter White/Heisenberg desde o início, nem sei porque). Terminei a série há semanas mas essa história ainda reverbera em mim. Algo me capturou de maneira irremediável no percurso desse homem que no meio da vida faz um desvio radical. As condições de temperatura e pressão capazes de provocar, acelerar ou impedir essa mudança; a perseguição de um desejo que, afinal, não era genuíno; a felicidade num lugar diferente de onde a procuramos, tudo isso (e mais) me incluiu entre os entusiastas da série.
Tinha tentado ver BrBa antes e achei o primeiro episódio chato e arrastado (o que me parece totalmente incompreensível agora). A quarentena me pareceu a ocasião perfeita para tentar novamente. Minha conversão se deu aos poucos. No começo eu dizia que só queria saber como Válter perdeu as calças. Porque tudo começa com a dita cuja voando e a intrigante cena desse homem de cuecas numa paisagem árida gravando um vídeo de despedida para a família. Um começo que condensa muito do trágico, patético, engraçado, tenso e dramático que viria a seguir.
O episódio começa pelo fim; após essa cena bizarra nós somos apresentados a esse cidadão mediano e sua vida medíocre que, aos 50 anos, é presenteado com um câncer de pulmão em estágio avançado e decide prover sua família nos meses que lhe restam produzindo a melhor metanfetamina do mercado. (Como é que eu não me interessei por isso antes?) Nos primeiros episódios parece que tudo que pode dar errado dá, e segui movida pela curiosidade em ver quando esse cara ia se dar mal, o que parecia inevitável e iminente.
Aos poucos fui pegando gosto pela história, pelos personagens, locações (eu tenho um fraco por desertos). Aliás, o fato de ser ambientada no Novo México confere tons especiais à narrativa. Uma paleta de cores terrosas domina a paisagem e a vida das pessoas, compondo uma atmosfera peculiar: esta não é a América glamurosa e idealizada que a gente costuma ver na tevê. Pelo contrário, é uma quase esquecida, perto demais do incômodo e subdesenvolvido vizinho latino. Mas nem por isso é menos América.
Vale dizer que a escolha do local foi um dos vários aspectos não programados da série – e eles são muitos e surpreendentes. As filmagens, que seriam na Califórnia, mudaram para o Novo México por detalhes técnicos. O personagem Jesse Pinkman duraria apenas alguns episódios da primeira temporada, mas a interpretação visceral de Aaron Paul fez Jesse sobreviver — inclusive à série. E várias outras pequenas histórias como essa se acumulam nas muitas entrevistas e reportagens disponíveis sobre BrBa . A produção soube tirar vantagens do acaso e se adaptar bem aos imprevistos naturais de uma produção do tipo.
Um ponto alto de Breaking Bad está no aspecto visual — não tenho certeza se “direção de fotografia” dá conta de tudo a que me refiro; se sim, ela é primorosa. Há engenho na escolha dos enquadramentos, nos objetos de cena, no movimento da câmera — nada é por acaso, e quase tudo tem um significado. Eles fazem “rimas visuais”, como alguém nomeou: uma cena que faz lembrar outra sem que sejam iguais. São detalhes que perdem a força e até mesmo o sentido se descritos, precisam ser vistos. A história de Válter é contada por diálogos e silêncios, planos, contraplanos, uma ótima trilha sonora e tudo mais que carateriza um bom produto audiovisual.
Nada disso se sustentaria sem excelentes interpretações, sendo Brian Cranston o destaque absoluto. Salvo ignorância minha, ele fez de BrBa o que Válter fez com o câncer: uma oportunidade para fazer algo grandioso em uma carreira até ali mediana. Sua interpretação arrebatadora, sob todos os aspectos memorável, foi capaz de nos manter interessados nesse personagem que desprezamos muitas vezes, pelo qual torcemos para que se foda tantas outras, mas com quem estabelecemos uma ligação incontestável. E que também despertou nossa empatia e compaixão.
Válter não é um personagem agradável. Em determinado ponto da trama eu me dei conta de que não gostava dele, mas podia compreendê-lo e até torcer a favor dele, aqui e ali. Gostar a gente gosta do Pinkman, a irresistível empatia pelo adolescente perdido que todo mundo foi um dia, em certa medida. Mas Válter, não: é um adulto que utiliza a doença terminal como passe para jogar fora seu compasso moral com a desculpa mais nobre – pelo bem da família. Alguém contraditório, perdido, corajoso, confuso , culpado e até mesmo piedoso, embora a sua imagem violenta, egoísta e cruel tenha prevalecido.
Isso, aliás, me incomoda um pouco no fandom de Breaking Bad. A série tem em torno de si uma aura de veneração: há uma legião de apaixonados capaz de discutir teorias, contestar falas e produzir artes incríveis, mesmo anos depois do fim. Mas percebo um viés equivocado em ver Válter quase como um super herói. É como se não tivessem reparado que, o tempo todo, era de ambivalência e ambiguidade que falavam Vince Guillian ( o criador da série) e Cranston em sua interpretação multidimensional. Mesmo nas temporadas finais, quando Válter fica mais Heinsenberg, não desaparece a sombra do medo, da dúvida e da dor em sua face. (Não por acaso, num momento de vitória absoluta, ele tem um curativo no meio da cara, uma lembrança incômoda de sua fragilidade).
Suspeito que essa mesma galera que enaltece o Heinsenberg é a mesma que hostiliza sua esposa, Skyler, creditando a ela a responsabilidade pela infelicidade do Válter, a mulher controladora que o mantém cerceado nos limites de um casamento opressivo. Acho essa uma visão simplista e machista (desculpem a redundância). No casamento, é preciso dois para fracassar ou ser feliz, a culpa nunca é apenas de uma pessoa (eu sei, I’ve been there, e voltei pra contar). Skyler ama Válter profundamente e isso fica claro muito mais por suas ações que pelas palavras. Tenta compreendê-lo e ficar ao seu lado mesmo quando descobre suas atividades. É ela que faz Válter confrontar suas reais motivações quando lhe pregunta “quanto é suficiente”. Enquanto Válter encarna o macho típico na falta de contato com as próprias emoções, no desconhecimento de seus desejos verdadeiros e na ontológica inabilidade de comunicação.
Apesar disso, não o considero um monstro. As circunstâncias e suas escolhas o levaram a fazer coisas monstruosas, mas Válter me parece tão humano quanto eu e você, e é isso que o torna assustador, terrível, e também sedutor. Um mentiroso contumaz cujas mentiras mais graves foram contadas para si mesmo. Valter é ao mesmo tempo seu próprio herói e algoz, na busca por se redimir da sua mediocridade.
Poderia falar muitas outras coisas sobre BrBa, mas a ideia é se despedir, não falar sem parar. Quero destacar apenas mais dois aspectos: Breaking Bad não mima nem subestima a audiência. Os personagens não ficam justificando seus atos, explicando suas razões; muito pelo contrário. Você tira suas conclusões e ao longo da história vai comprovando teorias ou descobrindo mal-entendidos. Talvez por isso até hoje desperte debates apaixonados internet afora.
E por fim, mas não menos importante, Breaking Bad não sucumbiu ao erro comum do universo das séries, que é ser vítima do próprio sucesso. Seu público foi crescendo aos poucos, ao longo das temporadas, mas ali entre a terceira e a quarta já havia quem questionasse o plano do genial Vince Gilligan, de parar na 5ª temporada. Ele se manteve fiel a sua fórmula, sabendo que, como na Química, qualquer alteração muda o resultado final. Vince soube, ao contrário de Válter, a hora certa de parar.
Posted on Quarta-feira, 10 Julho, 2019 by Duas Fridas
Dia desses eu descobri essa série, África 360°, e fiquei levemente obcecada, vi quase toda num fim de semana.
Antes, porém, preciso dizer que a descoberta foi um acaso total, porque o programa é exibido pelo Canal Off, que eu nunca assisto por muito tempo. O Off é uma espécie de distopia, um universo paralelo onde as pessoas nunca trabalham, não votam, não se preocupam com a previdência. Estão sempre em lugares incríveis que a gente não sabe direito onde é, fazendo um esporte que não entendemos bem como funciona, e faz sol o ano todo, até nas montanhas mais geladas. Poderia funcionar como um alívio da realidade, mas depois de um tempo eu começo a me incomodar com aquela gente esmagadoramente branca e aparentemente rica que parece não ter outra razão de viver a não ser se divertir. Aí, o que era relax vira raiva e mudo de canal.
Mas África 360º foge desse roteiro, a começar pelo local em que se passa e também pela proposta, que é percorrer todo o litoral do continente africano. Captaram minha atenção por isso, e fui ficando, assistindo um episódio atrás do outro, porque o surfe (que eu gosto mas não domino) é apenas um pretexto para a viagem. Os irmãos argentinos Joaquin e Julian Azulay a se interessam pelas culturas com as quais têm contato, se mostram abertos e respeitosos com as oportunidades de conhecer melhor as cidades por onde passam e os povos que visitam. Viajando num caminhão alemão reformado e equipado por eles, que serve de veículo e casa, eles encontram personagens interessantes e procuram oferecer, em legendas breves, informações básicas sobre os países e locais que visitam.
Fiquei um pouco irritada pensando no privilégio macho – uma viagem dessas feita por quatro mulheres é praticamente inviável por questões de segurança, pela ameaça de um tipo de violência específico ao qual só nós estamos sujeitas. Mas a indignação não é com eles, e sim com o mundo patriarcal e machista em que vivemos.
O projeto ainda não está completo, nesta primeira temporada eles chegaram até a Costa do Marfim. Mas vale apena conferir para conhecer a África realmente sob uma perspectiva incomum, sem o foco nos problemas e conflitos, um continente diverso, surpreendente, com personagens incríveis. E locações espetaculares. Dignas de Canal Off.
Posted on Quarta-feira, 22 Maio, 2019 by Duas Fridas
Eu não li os livros, mas talvez Jon Snow tenha sido o personagem que mais sofreu com a transposição para a tela e a popularidade da série. Sua ressuscitação foi um baque na trama do qual muitos não se recuperaram: houve quem deixasse de ver a série ali; muitos outros simplesmente pegaram ranço, mas gente, a culpa não foi dele.
“Ainnn, mas no fim das contas não adiantou de nada ele ser Targeryan…” Porque no fim das contas importa mais o que você faz com o que tem do que de onde você vem.
“Ainn, porque o arco do personagem o levou para o mesmo lugar onde começou…”. Primeiro começo a implicar com “arco do personagem” porque ninguém consegue comentar mais nenhuma série/livro/samba enredo sem usar essa expressão (não se aplica a você , Sócia). Segundo: o tal arco não é onde você chega, mas a trajetória que você faz. E por fim, Jaime Lennister também terminou onde começou, nos braços da Cersei. Só que ele era mais bonito, viril e contraditório. E dele o povo não pegou ranço.
Eu só queria reforçar um ponto das mui sagazes observações de mi sócia: eu gostei muito do final do Jão. After all, foi ele que “break the wheel”, pelo menos a roda do próprio destino, ao escolher se unir àqueles chamados tanto de ‘selvagens’ quanto de ‘homens livres’ – o que eu sempre achei bem desconcertante.