Esses dias eu estava pesquisando sobre inteligência artificial para um artigo acadêmico e me deparei com um autor chamado Heinz von Foerster, que, em 1984, já questionava o uso de metáforas “antropomórficas” para falar das máquinas:
Por exemplo, a perpétua referência à “memória”: mas os computadores não têm memória! Nunca teremos uma máquina capaz de escrever suas Memórias! Os computadores têm sim elementos de armazenagem que lhes permitem conservar números ou programas. Existe uma enorme diferença entre uma “memória” e um “sistema de armazenamento”: este último só pode reproduzir o que foi nele colocado, ao passo que a memória é um processo de transformação. (Grifo meu; a citação é desse livro aqui.)
(A propósito, e isso não tem nada a ver com o tema deste post – se é que este post tem um tema-, eu também já escrevi sobre minha implicância com essa história de “inteligência” artificial.)
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Comecei falando sobre a memória ser um processo de transformação, e não foi à toa. Isso porque meu filho fez aniversário e eu, em um momento #maedecasarea, comprei para ele um livro que na verdade era eu que queria ler: A Princesa Prometida, de William Goldman. A obra foi (re?)lançada no Brasil, e uma breve folheada nas primeiras páginas já me fez entrar em um túnel do tempo e resgatar uma memória afetiva que eu sinceramente não sei se aconteceu ou não.

Reconhece essa mocinha? Não?
Lembrava perfeitamente de ter visto o filme A Princesa Prometida, o qual eu nem sabia que era baseado nesse livro delicioso, no cinema. Lembrava de ter gostado muito, muito, do jeito cômico com que o filme retrata o gênero capa-e-espada, tipo “mocinho vive altas aventuras para salvar mocinha em nome do amor verdadeiro”. Lembrava de diálogos que já nasceram memes, antes de sabermos que memes existiam, como o inesquecível “My name is Inigo Montoya. You killed my father. Prepare to die.” Por fim, lembrava que vi este filme em uma tarde de um dia de semana, provavelmente em férias escolares, quase com certeza no cinema Paissandu, e aí é que minha memória se turva: lembrava de sair do cinema com minha avó, rindo atrasada das cenas hilárias e curtindo a surpresa de constatar que todo o romantismo daquela mulher do início do século não tinha resistido ao cinismo satírico do fim do século (e essa interpretação é feita totalmente a posteriori, pela versão de mim que já está muito mais próxima da idade que minha avó tinha naquela época que da Mônica que viveu a cena).
Só que, embora eu traga bem nítida a lembrança de ter visto esse filme com minha avó, não sei por que motivo sempre que penso nisso, desconfio. Tenho uma sensação difusa de que talvez esteja confundindo duas situações e que não vi o filme com ela, talvez sozinha, ou com outra pessoa.
Por sorte, eu mantive um hábito, durante muitos anos, de registrar o que fazia em agendas/diários, como muitas mulheres da minha geração (e de outras). Então resolvi investigar. O filme foi produzido em 1987, portanto separei as agendas daquele ano e do seguinte, pois na época os filmes demoravam a ser lançados no Brasil. Mergulhei em anotações de estudante (ler capítulo tal, estudar para a prova de tal coisa), bilhetes de amigas (algumas de que nem me lembro mais), lembretes de aniversários, registros de brigas com o namorado, ingressos de shows, e muitas, muitas notas sobre filmes, peças de teatro e espetáculos que assisti quando adolescente.
Depois de um ano e meio de reminiscências, finalmente encontrei a anotação sobre A Princesa Prometida:
Casa da Fulana.
“A Princesa Prometida”.
Parque Recreio.
Assim, sem nenhuma explicação. Sem menção a quem estava comigo. Na grande maioria das minhas anotações eu registrava vários detalhes, como o cinema, as companhias, o que fiz depois, se gostei do filme. Neste, nada.
Minha memória acertou uma coisa: vi o filme em uma quarta-feira, dia 27 de julho de 1988, no meio das férias. Muito provavelmente acertou outra: o restaurante Parque Recreio ficava no Flamengo, pertinho do cinema Paissandu, então é certo que vi o filme lá. Assim, desconfio que minha companhia deve mesmo ter sido minha querida avó. Ao revisitar essas duas agendas, de quando eu tinha 17 e 18 anos, percebi que mesmo no auge da minha adolescência era muito frequente visitar a vovó ou passear com ela – e isso me deixou feliz, porque nos últimos anos de sua vida, por motivos diversos, alguns deles de ordem prática, outros de fundo emocional, não tive muitos momentos compartilhados com ela. Visitava, aceitava as deliciosas sopas e bolos que nunca faltaram em sua casa, ouvia histórias e reminiscências, mas a frequência era pouca.
Ainda bem que, como aprendi com minha amiga Maria João, a memória é uma velha louca, que joga comida fora e guarda trapos coloridos. Esse retalho amarelado pelo tempo me trouxe, nesta tarde de inverno, exatos 30 anos depois, uma lembrança que, na verdade, não importa que tenha (ou não) acontecido. Ao contrário do que creem os defensores da singularidade tecnológica, a gente não lembra com o cérebro: é com o coração.
-Monix-
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