Chico sempre

Para Geide e Tina

Uma mudança na minha rotina tirou a possibilidade de caminhar/andar de bicicleta cedo, e lá se foi uma mais uma vez o hábito recém readquirido do exercício físico. Além da preguiça nossa de cada dia, sou uma pessoa matinal, malhar em qualquer outro horário é uma dificuldade a mais pra mim. Mas o corpo reclamou e lá fui eu sexta-feira, repetindo pra mim “é só meia hora”, que sempre serve pra ir além disso.

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Cinco minutos depois e eu já tinha lembrado como o exercício oxigena o cérebro, e como é bom cantarolar pelas ruas  (até alto, nas menos cheias).

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Caminhei ouvindo uma playlist feita a partir do último show do Chico. Depois de algumas músicas acabo repetindo mentalmente como um mantra: “Como o Chico é genial! Como o Chico é genial! Como o Chico é genial!”. Na sexta foi depois de “Paratodos”, que é uma árvore genealógica afetivo-musical brasileira, homenagem, receita e testamento.

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Ouvindo “Biscate” achei que pode servir de trilha sonora para a tetra tuiteira da semana, sobre namorar ou não alguém desempregado:  “Vivo de biscate e queres que eu  te sustente…andas de pareô eu sigo inadimplente“.

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Fala-se muito sobre as mulheres de Chico, mas há que se reparar também nos casais de Chico. Amo esses dois de Biscate, queria ser um deles. Disfarçam o amor com reclamações e críticas mais ou menos veladas, mas no fim das contas querem mesmo é se mandar daqui, ir pra Bahia, ver o sol se por e sair na bateria. Parecem ‘sob medida’ um para o outro – citando outra pérola buarquiana.

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Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

(Choro Bandido)

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Meu coração, que você sem pensar
Ora brinca de inflar, ora esmaga
Igual que nem fole de acordeão
Tipo assim num baião do Gonzaga

(Tipo um baião)

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Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.

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Acho “Caravanas” tão foda, forte, tão Rio de Janeiro que eu coloco junto a outras grandes canções políticas do Chico. Não é música de protesto dos anos 60, mas tem a mesma contundência e poder de denúncia. Uma crônica, ou talvez um videoclipe: eu vejo os caras chegando de ônibus na zona sul, a algazarra, o temor, a alegria, a tensão e o tesão latente e reprimido. E amo o deboche final: “Sol, a culpa deve ser do sol“.

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A última música da caminhada foi a que deu nome ao show, “Que tal um samba?” Muitos anos se passarão e eu ainda vou me lembrar de mostrar “Que tal um samba?” dentro do carro, em São Paulo, para duas das amigas mais queridas. Foi no dia seguinte ao lançamento da música, entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2022, e tudo que a gente desejou foi que aquilo fosse um prenúncio de que, depois de uma dor filha da puta, a gente poderia “Juntar os cacos, ir à luta/Manter o rumo e a cadência/Desconjurar a ignorância/Desmantelar a força bruta”. Obrigada, Chico, por esse “vai passar” profético e delicado, que naquele momento nos envolveu como um abraço e fortaleceu nossa resistência.

Helê 

 

 

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Portela, 100 anos

Numa mistura muito brasileira e peculiar de carinho e racismo, meu padrinho me chamava de Neguinha da Portela quando eu era criança; somente por isso, durante um tempo eu achei que era portelense. Mas quando meu coração foi consultado, foi difícil negar: diante da Verde & Rosa desfilando Drummond, chorei de emoção, alegria, beleza e pertencimento. Ali eu soube que era mangueirense, ainda que estivesse, fisicamente, mais próxima de Oswaldo Cruz do que da Estação Primeira.

A verdade é que durante muito tempo ambas eram territórios tão poéticos quanto abstratos: só adulta fui pisar em solo sagrado. Mangueira e Portela entraram na minha vida, além das transmissões dos desfiles, trazidas por seus talentosos filhos, filhas e divindades. Foi ouvindo desde cedo Paulinho, Clara, Beth, Cartola, Alcione, Monarco e, mais tarde, Zeca, que aprendi algumas das mais belas canções escritas em português. Foi em rodas de samba improvisadas em Marechal Hermes que me familiarizei com esse repertório de sambas que compõem a riqueza inestimável dessas agremiações.

Demorou, mas depois que descobri o caminho da quadra, não esqueci mais. E ontem, quando a Manu enviou uma foto nossa na Portela, comentando o centenário, começou a rodar um filminho da minha cabeça das muitas vezes em estive lá. Lembrei da minha filha pequena sambando em cima da cadeira, de encontrar meu amigo Wellington e sua distintíssima mãe numa feijoada; de circular nos arredores numa celebração do Trem do Samba; do show do Paulinho da Viola (com a Manu); do primeiro desfile dos Timoneiros – para onde levei os Parasitas Garbosos (quando comecei pedindo a benção ao Seu Monarco e terminei sambando à frente da bateria, sucesso absoluto!).

Portela: um lugar onde sempre fui muito feliz, em que tive grandes encontros, lembranças divertidas, ternas e inesquecíveis – mesmo para quem é apenas ‘simpatizante’ (como disse a imperiana Manu). Terreiro ancestral e encantado, correnteza de beleza, rio que banha o Rio inteiro de poesia e majestade. Meu coração mangueirense sempre se deixará levar quando vir você passar, Portela. Obrigada e parabéns!

Helê

Alegria é a prova dos nove

Matheus Nachtergaele, numa entrevista inteligente e original (coisa raríssima na cobertura televisiva do carnaval), me lembrou dessa frase espetacular do Oswald de Andrade – que eu aprendi, ainda pequena, com Gilberto Gil em “Geleia Geral“. Eu devia ter uns 10, 11 anos, e ficava um pouco intrigada pensando: a prova dos nove de quê exatamente, qual era a conta? Mas intuía que aquilo estava certo e era bom (e sempre me incomodei com o verso seguinte, tristeza não pode ser porto seguro para ninguém).

Hoje sei que alegria é a prova dos nove da vida, é o que certifica que continuamos pulsando e que vale a pena, malgrado as subtrações injustas que sofremos ao longa da caminhada. Nós, por exemplo, perdemos décadas durante os últimos quatro anos de governo. Mas então fomos pra rua pra constatar que sobrevivemos – e aqui estamos, no lo fuimos, no lo vamos. Continuamos capazes de sorrir e gozar coletivamente, a maior afronta possível para a necropolítica e seus adeptos.

Foi durante este carnaval que eu me dei conta do que foi viver quatro anos sob um governo fascista, sendo dois deles sem carnaval. Percebi com todos os sentidos, como quem olha para o carro capotado depois de sair das ferragens: foi brutal. A gente nem entende exatamente como conseguiu; talvez uma certeza inconsciente, atávica e inabalável que a alegria não sucumbiria. “Resistir é lei, arte é rebeldia”, Mangueira, 2023.

E eu podia deixar passar esse São Jorge? Paulo Barros, para Vila Isabel

Nesse indispensável lapso de lucidez que é o carnaval, celebramos nossas vitórias – sim, a gente cantou “olé, olé, olé, olá Lulá, Lulá” em vários momentos, o que é muito significativo uma vez que já ganhamos, somos governo (se reclamar cantaremos mais!). Acho que é também uma maneira de reafirmar nossa escolha e a vigília eterna pela liberdade. Mesmo sabendo que “eles são muitos, mas não podem voar”.

Este ano ficou fácil para aqueles que apresentam defeito de fábrica e dizem não entender o porquê da euforia do carnaval. Havia muito a comemorar, extravasar e cair de boca, em face do tudo o que vivemos. Mas a minha tese é que a alegria é a prova dos nove da vida, seja ela difícil ou não. Eu até consigo compreender as pessoas que têm dificuldade em entender que alegria é essa que a gente sente no carnaval, porque deve ser a mesma dificuldade que eu tenho de entender essa pergunta.

Experimentamos pequenos e grandes prazeres. A ministra Margareth desfilando na Mangueira, onde o Rio é mais baiano. A entrevista do Nachtergaele, citado no início do post: encarnando Lampião, ele sublinhou a importância de homenagear o Nordeste, que nos salvou do fascismo – com essas palavras, ao vivo na Globo (foi lindo). Ele ainda nem sabia, àquela altura, que essa homenagem ia ganhar o campeonato e dar mais um título ao meu carnavalesco do coração, Leandro Vieira. Que deu ontem uma entrevista deliciosa, ao vivo, reafirmando o poder da comunidade, revelando que teve dor de barriga o dia todo e que iria beber tanto quanto trabalhou! Divertido, anárquico, fora do padrão, alegre, carioca, carnavalesco. Que prazer de ver campeã a escola de Ramos, composta em grande parte por moradores do CPX, o mesmo Complexo do Alemão visitado por Lula e cuja sigla tentaram criminalizar – como de resto, tudo o que se refere às favelas.

Estão chamando de pé quente….

E assim, muito a contragosto e na marra, encerro as reflexões sobre o carnaval 2023. Olho desolada para a bagunça da minha casa, mas aí lembro da lição aprendida esse ano no Boitatá, com o bamba Moysés Marques: “Carnaval, manga e sexo, se terminar limpo, é porque você não fez direito”.

Helê

A volta

Escutei os teus sinais numa segunda-feira no Saara, procurando fantasias e adereços com minha filha e com a Dedeia. Experimenta daqui, pechincha dali, “lembra daquele ano em que a gente comprou duas caipirinhas giga por 10 reais?” “Será que eu tenho coragem de usar esse short?” “Ah, 15 nesse brinco eu não pago, 12 no máximo”. Tudo isso entrando e saindo de loja, mandando foto de acessório pra quem não veio e com um sol pra cada uma. Mas ali a gente já começou a se divertir e ter certeza de que ele, enfim, voltaria.

Achei que o reencontro seria no Cordão do Boitatá no domingo, às 7h. Mas aconteceu um pouco antes, quando me vi dividindo um uber com o Fábio, a Bia e o Henrique – que nunca tinha visto na vida e que, como eu, encontraram o metrô fechado. A cidade, que tem diferentes estágios de emergência – vigilância, atenção, alerta – já estava em estágio de Carnaval: o único em que você não hesita em dividir um carro com três desconhecidos, todos comprometidos em exercer a faceta mais malemolente da nossa cidadania: brincar carnaval. Recebi pix de uma margarida, um cara com antenas (?) e outro vagamente das Arábias e chegamos a tempo para o nosso compromisso, há dois anos adiado e esperado.

Na arrumação do Cordão, a banda esquentou homenageando o aniversariante do dia, Martinho da Vila, conclamando: “Vamos renascer das cinzas” – e eu já arrepiei. Na saída do bloco, aos primeiros acordes de “Tristeza/por favor, vá embora”, eu segurei o choro pra não estragar a maquiagem nem borrar a purpurina: ali eu tive certeza que o Carnaval voltou.

Aí foi partir pro abraço, ficar na muvuca, sair da muvuca, encontrar conhecido, beber líquidos de origem duvidosa, sorrir e receber sorrisos, muita gentileza e simpatia de quem, como eu, estava morrendo de saudade. O Cordão do Boitatá tem uma aura meio mágica, uma mistura de novidade e tradição bem peculiar, capaz de tocar o “Trenzinho Caipira” , “Carinhoso” e “Baianidade Nagô” com mesma excelência e animação; que tem uma ala de baianas e também de pernas de pau, tudo junto e misturado e lindo. Desfilei com a Manu, a eterna musa do GRBC Me chama que eu vou, pessoa que sente o carnaval da mesma forma que eu (sintonia rara e sacra). Depois encontramos com Dedeia, que cumpriu belamente a missão de segurar a cobra durante o desfile (êpa!), e seguimos pelo Centro encontrando amigos, ocupando a rua, felizes e emocionadas com esse esperado reencontro.

Já é!

Bom carnaval a todes; evoé, Momo!

Cordão do Boitatá — Foto: Foto Luciola Vilela /Riotur

Calou-se o cavaquinho de Gallotti

Acordei com a notícia terrível da morte do músico Eduardo Galllotti, aos 58 anos de idade. Soube por um post do Pratinha, outro músico-personagem da cidade, e só por isso acreditei no inacreditável. Não era meu amigo, acho que nunca falei com ele, só aplaudi. Era um excelente músico, comandante de memoráveis rodas de samba que frequentei nos últimos anos nesssa cidade que é musical antes de qualquer outra coisa. Desde cedo passa na minha cabeça um filminho mal editado mas com a melhor trilha sonora e as locações são o Trapiche Gamboa, a livraria Folha Seca, o Samba do Peixe e mais outras que não me lembro o nome mas tinham em comum aquele moço de caracóis no cabelo e óculos redondos, que vez por outra também cantava – sempre bons sambas; não necessariamente conhecidos mas de inconstetável beleza – só a fina flor. A perda de alguém como Gallotti é um baque profundo, desnecessário e atordoante: perde o samba, o choro, as rodas, a Lapa, a cidade, a boemia, perdemos todos nós amantes de tudo isso. Uma belíssima matéria da Maria Fortuna no Globo de novembro passado, que exaltava o retorno dele depois do tratamento do câncer, o chamou de ‘elo perdido’, pela habilidade em transitar por rodas em todos os cantos da cidade, fazendo preciosas conexões entre elas: da Tia Surica em Madureira até Paquetá, passando por Botafogo, Vila Isabel e onde mais você imaginar nesse Rio em que cada ribanceira é uma nação. Veja você se o Rio de Janeiro merece perder alguém desse naipe, essa cepa de carioca que é a sua síntese mais necessária e valiosa! Esta cidade, partida em mil pedaços, fragmenta-se e enfraquece mais sem um elo como este; perde-se em tristeza.

Cedo demais, cedo demais.


Obrigada por tudo, Gallotti.

Helê

Duas Fridas, vários Rios

Na verdade, tá tendo: você já pode acessar no Spotify o novo episódio do Podcast das Fridas – o terceiro no total, segundo se descontar a pilota. Nós conversamos sobre o Rio de Janeiro, essa cidade que nos acolhe e repele diariamente, nossa miragem mais real, nosso amor vagabundo compartilhado. Mas será que o Rio que a Helê navega é o mesmo que a Monix atravessa? Correm paralelos, cruzam-se ou só vão se encontrar no Atlântico? Ouça nosso podcast e descubra. E depois passe aqui e diga o que achou, qual é o seu Rio, de que lado você samba e onde a gente se encontra, ok? 😉

E ainda: Opiniões Não-Solicitadas e as sempre imperdíveis Dicas das Fridas.

Sintonize nas Fridas (eita, entreguei a idade!) e divirta-se. Nós adoramos fazer 😁😁.

Helê

São Jorge, carnaval

Eu já reclamei no twitter (onde mais, né?) desse calendário doido em que o carnaval vem depois da Páscoa – e nem católica eu sou, veja você!… Botei a culpa do meu desconforto no ascendente em virgem, mas esse moço definiu melhor:

Tentando abotoar essa camisa existencial e retomar os preceitos fundamentais da vida, lá fui eu no dia 23 para a Igreja de São Jorge, vestida de melindrosa. Porque também era sábado de carnaval, a roupa é vermelha, achei que o Santo entenderia. Em sinal de respeito, tirei a pena da cabeça, na hora da reza.

Foi um reencontro comovido, como têm sido todos na Retomada. Eu, que já choro nessas ocasiões porque a fé me emociona demais, chorei dobrado esses dois anos de ausência, perdas e lutas, em que, apesar de tudo, as roupas e as armas de Jorge protegeram não só a mim, mas também os meus. Salve, Jorge! Sempre! Ogunhê!

São Jorge Ogun no desfile da campeã Império Serrano

Como faço todos os anos, saí da igreja com planos vagos, disposta a andar um pouco pelas redondezas, observando o movimento dos fiéis, disponível para o que a rua oferecesse. Sempre, desde que instaurei pra mim essa tradição de ir à Igreja no dia de Jorge, coisas surprendentes e felizes acontecem: já encontrei rodas de samba memoráveis, já comi feijoada de graça, encontrei amigos, vi apresentações de choro, celebração de umbanda no Campo de Santana, já fui parar na quadra da Estácio de Sá… Desta vez achei que nada aconteceria já que o movimento foi muito menor, mas ao longe ouvi um batuque, fui me aproximando e era um maracatu que veio ao meu encontro. Vinha lindo e potente o Baque Mulher, com sua magnética rainha à frente, e eu fui acompanhando o cortejo, lembrando imediatamente dos passos, como se não fizesse dois anos que eu não dançava. E para que o recado não passasse despercebido, minha mestra no Tambores de Olokun me encontrou no meio do povo, e num abraço esfuziante me convocou: “Volta!”.

Surpreendentes e felizes, eu disse.

Depois disso, fui até a Praça da Harmonia, onde novamente encontrei São Jorge e uma mistura indelével de fiéis e foliões. No caminho, fui abordada por um “frei” (“ô, melindrosa, sabe que horas sai o bloco?”), fiz duas amigas (“Oi, eu sou a Vanessa, ela é a Michele, tá indo pra praça também?”) e ouvi alguém reclamando sozinho pela rua: “É São Jorge, é carnaval, é jogo do Flamengo, assim não dá! Vai ter que ter um auxílio emergencial de mil reais! E quando o Lula for eleito, vai ter outro carnaval!”. Ou seja, puro suco de Rio de Janeiro, só um pouco mais bagunçado que o habitual.

Fora essa rápida saída sacro-profana, o carnaval de abril não me capturou, e nem sei explicar bem o porquê. Só não bateu, simples assim. Acabei curtindo pela tevê, e mesmo assim, só algumas escolas. A Mangueira, belíssima, me fez chorar em camadas com a comissão de frente: o surgimento dos três homenageados, as rosas brotando, a homenagem a Seu Nelson Sargento. É realmente uma lástima que não tenhamos nova oportunidade de vê-la, assim como o magnífico carro em que Seu Delegado bailava etéreo sobre uma caixa de música, bailarino exímio que foi (tive a honra de vê-lo de perto e cumprimentar, juntamente com D. Mocinha, em uma apresentação na Uerj, garbo e elegância inesquecíveis). Não consegui uma boa foto desse carro, o que me fez pensar que o desfile tem uma volatilidade desconcertante. Todos os anos vemos alas refinadas, fantasias primorosas, carros estonteantes por alguns minutos – e isso dentre aquilo que a transmissão monopolizada, precária e parcial decide mostrar, que ainda é apenas uma parte o espetáculo real. A gente não pode normalizar algo tão improvável e espetacular, e deveríamos manter um registro cuidadoso dessa expressão ímpar e magnífica que é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Que mesmo acontecendo meio fora de lugar no calendário, foi fundamental para restabelecer laços, crenças e esperanças. Além de marcar o tempo: é preciso o carnaval, ou pelo menos o desfile, sua raiz profunda, para que a gente acerte os botões da camisa – ou desista dela de uma vez e vista um collant de lamê.

Quem sabe agora, com Exu devidamente reconhecido e celebrado – ele que deve ser o primeiro a ser servido – não possamos nós, de fato, recomeçar? Laroyê! E que a gente cumpra a obrigação ancestral de ser feliz.
Helê

O não-carnaval

Se a guerra for declarada
Em pleno domingo de carnaval
Verás que um filho não foge à luta
Brasil, recruta
O teu pessoal

Se a terra anda ameaçada
De se acabar numa explosão de sal
Se aliste, meu camarada
A gente vai salvar o nosso carnaval

Alguém sugeriu que, já que vai ter guerra mesmo, deviam então liberar o carnaval (foi no tuíter, claro, aquele repositório de sabedoria e bobagens). Desde então eu não tiro da cabeça essa marchinha deliciosa do Chico, na qual a tropa do general da banda dança o samba em Berlim, a melindrosa manda bala e a rajada é de tamborim.

Caminhando para o terceiro ano de pandemia temos novamente o carnaval cancelado – mas se pagar, pode. Suspensos o desfile das escolas e o esparramar dos blocos, multiplicam-se programações pagas pela cidade, porque o coranavírus, como se sabe, só funciona em eventos gratuitos. Surgem também, aqui e ali, uns subversivos que insistem em ir às ruas, e assim o carnaval popular carioca entra na clandestinidade – algo que eu nunca pensei que veria.

Mas o Francis Hime, parceiro de Chico, perguntou há tempo atrás, numa canção repleta de absurdos, “e se o carnaval cair em abril?” , e é para este mês que foi transferido o desfile na Sapucaí. E não podemos esquecer que o Botafogo foi campeão (da segunda divisão, mas o Francis não especificou). Então eu já não duvido de mais nada, e torço pro meu amor gostar, então, de mim.

Não consigo evitar a melancolia desses dias, um banzo orgânico e incontornável. Não julgo quem vai pra folia, pagando ou escondido; condeno o poder público, incapaz de exercer a autoridade concedida pela população para protegê-la. Para mim não funciona esse carnaval meia boca, fantasia é muito diferente de disfarce. Eu quero ver cada paralelepípedo dessa cidade se arrepiar, quero botar o bloco na rua, festejar o teu sofrer, o teu penar, ser rainha no meio de uma gente tão modesta. Na rua e sem medo.

Pretendo encontrar uns poucos amigos, tomar algumas cervejas e dar um grito de Carnaval (só um, pra não espantar a clientela do bar). Vou aproveitar para discuitr com outro foliões desterrados nomes de não-blocos, como Náufragos da Alegria, Se melhorar eu volto, Abstêmios da Folia, Órfãos de Momo, Me beija que eu tô vacinada, Sambistas da Saudade. Uma brincadeira melancólica, mas é o que temos para hoje.

Sigo torcendo para que em 2023 a gente volte pra rua com alegria e fervor. Até lá, vou continuar me guardando pra quando o carnaval chegar.

Helê

Valei-me meu São Jorge Guerreiro!

VACINA!

Helê

Cinzas

Passei os dias mais tristes da pandemia neste último fim de semana, num banzo abissal. Uma ausência imperiosa, esmagadora, o silêncio ensurdecedor da rua. Suspirei pelos cantos como quem perdeu um amor. De vez em quando olhava pela janela pra ver se ele por acaso iria voltar. Temi que fosse exagero, mas um amigo, também feito no carnaval como eu, me disse que olhar para suas fantasias era como encontrar peças de roupa do ex esquecidas no armário. E suspiramos juntos, embora separados.

Não se trata propriamente de sentir falta da ilusão, porque pra mim o carnaval é de um realidade inconteste. Também não sinto falta do escapismo, como dizem alguns: eu escapo* o ano todo para que no carnaval eu possa estar e ser, plenamente.

Carnaval de Olinda, 2021. Foto de Ivanildo Machado.

Para atravessar esse feriado, esse deserto de folia, alegria e purpurina, recorri aos amigos, às lembranças e ao colo que Maria Bethânia deu ao Brasil em sua live transmitida no sábado de carnaval. Verdade, vacina, respeito e misericórdia exigiu a rainha, que nos vacinou com beleza e esperança, assegurando que a primavera virá, mesmo que esqueçamos seu nome. Dormi naquela noite aninhada na fé em Bethânia e em suas palavras.

12 de Fevereiro de 2021
O dia em que os nossos tambores não rufaram. Estamos em silêncio, não apenas por causa do carnaval, mas também por todos que perderam as suas vidas para o Covid-19! @OlodumOficial

Os outros intermináveis dias atravessei como foi possível. A minha alegria, que todo ano atravessava o mar e circulava sem âncora pela cidade, virou um refluxo, um travo. Não poder estar com os amigos celebrando o fato singelo e necessário de estar com eles me abateu demais. Ouvi repetidas vezes nesses dias: “Até eu, que não sou de carnaval, estou sentindo…”, o que só comprova a dimensão e potência do carnaval, que atinge mesmo aqueles que não se dão conta disso.

Meu coração ficou em desalinho, como disse Monarco; não fiquei feliz, como Bel Marques declarou. Mas fiquei satisfeita ao perceber que aqueles que amam o carnaval de verdade, que compreendem sua função e importância – mais na pele que intelectualmente -, esses comungaram dessa tristeza coletiva, sem tentativas de burlar a proibição. Porque quem ama o carnaval entende que não adianta uma festa pra mim ou para os meus: ou salvam-se todos ou não há carnaval possível.

Monarco vacinado na Praça da Apoteose no sábado de carnaval

Então vamos nos salvar, gente. Pela arte, pela fé, pela militância, pelo amor, como for possível. Salvemo-nos todos, bravamente; vamos nos manter vivos, a mais desafiadora e eficiente forma de resistência. Estaremos aqui quando o carnaval chegar – porque ele, assim como a primavera, também voltará.

Helê

*Ao falar sobre escapar a Rádio Cabeça começou a tocar “Feliz por um triz”, de Gil:
“Mal escapo à fome
Mal escapo aos tiros
Mal escapo aos homens
Mal escapo ao vírus
Passam raspando
Tirando até meu verniz”

 

 

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