Cotas

O jornal distribuído no metrô informa que uma pesquisa da PUC concluiu que há mais universidades com cotas para alunos de escolas públicas do que para negros. O que acaba com o argumento de que “as cotas deveriam ser sociais e não raciais”. A se considerar as conclusões da pesquisa, as cotas sociais já existem, e com muito mais penetração.

“De acordo com o levantamento, cerca de 60% das universidades estaduais e federais do país adotam algum tipo de ação afirmativa. Dessas, quase a metade (42%) são cotas. Entre as universidades que fazem reserva de vagas, a maioria é para alunos de escolas públicas (82%), 59% indígenas e 58%, negros. As modalidades podem ser oferecidas simultaneamente.

Segundo uma das coordenadoras da pesquisa, a antropóloga Elielma Machado,apesar de as cotas raciais não serem tão predominantes quanto as outras duas, são alvo muito mais freqüente de críticas na sociedade. Para ela, uma explicação para o fenômeno está no racismo.”

E você, o que acha? A caixa de comentários está aberta para a polêmica, podem falar.

-Monix-

Nós já falamos sobre racismo e cotas raciais em 11 de janeiro de 2008, 17 de abril de 2005 e 12 de junho de 2004.

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Eu prefiro um lugar onde não existam racistas. Se o racismo sempre vai existir, eu não sei. O que sabemos é que ele existe. E enquanto existir, eu prefiro um lugar onde os racistas tenham vergonha de se assumir enquanto tais.

Bem colocado, Idelber. Eu também prefiro. Mas, como o mundo não é preto-e-branco, muito pelo contrário, somos todos em tons de cinza, me parece que essa vergonha do racismo é, ao mesmo tempo, o que nos salva do apartheid e o que nos torna ainda mais reprováveis. Em meus 37 anos de vida, tendo trabalhado e convivido com centenas de pessoas diferentes, conheci apenas UMA que se assumia como racista (embora tentasse justificar pelo fato de ser nordestina (?) e ter sido “criada dessa forma”). No entanto, até em minha família cansei de ver situações em que negros ou mestiços foram tratados com condescendência ou de maneira humilhante. Quem bate, esquece, já diz o ditado. Para evitar apanhar – e hoje em dia, nós, da classe média iluminada, temos o orgulho discutível de poder afirmar que esse “apanhar” é em geral metafórico -, tantos e tantos mestiços (diria que quase todos os que eu conheço) se comportam como e se intitulam brancos. Por essas e outras, continuo seguindo o argumento da minha sócia Helê, que diz: quem é preto, no Brasil, sabe.
Sem querer ser intelectualmente leviana, e baseada apenas na minha parca experiência de turista, em Cuba vi uma realidade bem diferente da brasileira – e me parece que historicamente temos características semelhantes tanto na estrutura do escravagismo quanto na proporção entre as populações negra/branca/mestiça. Lá tive a sensação de que a cultura negra é bem mais valorizada e há, aparentemente, uma mobilidade social – na medida em que se possa usar esse termo num país socialista – menos ditada pelo tom da pele. Corrijam-se se estiver errada: como disse, esta é apenas uma impressão de turista. De qualquer forma, cito essa impressão apenas para questionar as alegadas razões históricas para a especificidade brasileira. Claro que as relações de causa e conseqüência não são tão diretas assim, mas de qualquer forma essa distinção me fez pensar, agora, sobre qual o papel desempenhado pela estrutura de classes brasileira no processo de discriminação racial.
Para mim, este é o “xis” da questão quando se debatem cotas raciais. Há o predomínio de uma linha argumentativa, pelo menos no meu “círculo social” (pô, me senti uma socialite escrevendo isso, hahahaha), que defende as cotas sociais em detrimento das raciais. Eu não vejo o porquê de uma eliminar a outra, acho que ambas podem ter sua razão de existir. Mas o fato é que no Brasil o racismo e a gritante desigualdade social (leia-se econômica) se interrelacionam de forma muito particular, e por isso é difícil transpor o modelo americano sem adaptá-lo à nossa realidade.
Em relação ao pouco que conheço sobre o problema racial nos Estados Unidos, uma das coisas que mais me impressinou foi justamente o sistema de ‘one drop rule’. Extrapolando um pouco, fico aqui viajando que a ‘democracia’/hipocrisia racial brasileira se baseia no conceito oposto: para nós, uma gota de sangue branco deveria ser o passaporte para uma suposta “purificação” – o que, na prática, só complica as classificações. Um dos argumentos mais simplificadores dos que são contrários às cotas é o de que é impossível determinar quem é negro no Brasil, e que “qualquer um” pode pedir acesso à Universidade alegando ser negro. (Bem, eu não posso… nem você, né, Idelber? Pois é.) Deixando de lado o fato de que esse argumento totally miss the point, ele só reforça, a partir de uma questão meramente operacional, a dificuldade de se discutir racismo num país predominantemente mestiço como o Brasil.
Enfim, continuo achando, basicamente, o seguinte: 1) o grande mérito da implementação do sistema de cotas no Brasil – que, por definição, tem que ser temporário, e essa, na minha opinião, é a maior falha do sistema atual – é fazer com que os intelectuais, a academia, os políticos e a classe média finalmente tenham se decidido a discutir o problema do racismo, que, historicamente, vinha sendo empurrado para debaixo do tapete; e 2) só a auto-declaração salva: eu não sei quem é negro, mas tenho certeza de que quem é negro, sabe.

-Monix-

Texto publicado originalmente como comentário a esse post do Idelber.

Março 20, 2007


Um dos argumentos dos que são contrários às cotas é sempre pela dificuldade que existe em reconhecer quem é negro ou não no país. Só o Brasil tem essa dificuldade. E a dificuldade só aparece quando é para se transformar em alguma vantagem. Na hora de ser desvantagem não há problemas. Quem anda de trem? Quem está no subemprego? Quem mora nos subúrbios? Quem está nas cadeias? Há dúvidas? Parece-me que não. Mas há dúvidas sobre quem é negro pra entrar nas universidades pelas cotas. Estranho não? Sugiro que se chamem os jornalistas que estão cobrindo a F1 e a costureira de Niterói para, juntamente com policiais, bombeiros e proprietários de imóveis que os alugam direto, sem imobiliária, ah, sim, e taxistas, principalmente os que circulam à noite, para formarem a Comissão Suprema de Classificação Étnico-Racial Brasileira.

Márcio Alexandre Gualberto, no Palavra Sinistra

Eu faria uns reparos aqui e ali no artigo do meu amigo Márcio, mas esse trecho é sensacional. A Comissão Suprema de Classificação Étnico-Racial Brasileira não pode prescindir de porteiros de variados matizes, seguranças e garçons, outro profissionais que, independente de sua própria cor, fazem uma distinção clara (ôps!) entre negros e brancos, sem hesitação ou consulta à bibliografia.
Esquecemos de alguma categoria profissional, gente?

Helê

As cotas raciais, agora sob o viéis econômico

Fala-se de uma economia forte e estável quando o país conviver, ao longo do tempo – e não apenas em espasmos – com um setor público realmente equilibrado, preços realmente estabilizados e o setor externo realmente em expansão. Nada disso será possível, podem acreditar, enquanto as vias de acesso do mercado aos bens e serviços que tal economia poderia oferecer continuarem vedadas à maior parte da população.
É necessário, por isso mesmo, enfrentar a questão das políticas afirmativas e da imposição de cotas para negros e/ou pobres em diversas áreas de atividade. Os doutos e sabidos têm a obrigação de arrumar soluções e saídas. Mas começando já – e não, como é clássico entre nós, deixando tudo para as próximas gerações. A longo prazo, como ensinou Lord Keynes, ícone da moderna economia do século XX, estaremos todos mortos.
(…)
Dados como esses indicam a necessidade de ações afirmativas e “desiguais” para a superação das discriminações seculares. Sem isso, nascer negro continuará a ser o caminho mais natural para crescer pobre.

Leia a íntegra No Mínimo.

-Monix-

Eu estudei na UFRJ porque meu pai cresceu em Botafogo, estudou no Andrews e na UFRJ. Ele estudou na UFRJ porque meu avô estudou engenharia no Instituto Eletrotécnico de Itajubá (turma de 1938) e trabalhou nas obras da Usina de Paulo Afonso, com a Chesf. Meu avô foi engenheiro porque meu bisavô, nascido na época da escravidão, saiu do Mato Grosso pra estudar no Colégio Militar, no Rio, onde foi primeiro aluno e tem uma plaquinha lá com o nome dele até hoje, depois formando-se engenheiro militar.
Em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do Império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura.
Se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo e sem nem saber ler, onde será que a cadeia de acontecimentos que foi dar na minha vida iria parar? Teria eu tido a chance de conhecer a Europa de primeira classe ou de estudar no colégio mais caro do Rio? Provavelmente, não.
Ou seja, dado que os efeitos nocivos da escravidão ainda se fazem sentir na pele dos descendentes das vítimas, não é tarde demais para serem indenizados pelo Estado.

O blogueiro Alex Castro mudou de opinião e agora é a favor das cotas para afrodescendentes nas universidades públicas. Leia os argumentos dele e saiba o porquê.

-Monix-

Sobre cotas

Por dever de ofício, eu acompanho essa discussão há anos, muito antes de virar um tema popular. Portanto, sempre me esquivo da conversa em fins de semana, feriados e fora do horário comercial – na maioria das vezes por pura preguiça. E também por uma certa rebeldia, porque existe a expectativa, para não dizer a cobrança, de que todo e qualquer negro tenha opinião, argumentos, dados e estatísticas sobre o assunto a qualquer momento. Mas la Otra levantou a lebre, pintaram comentários, e depois de muitas versões, segue minha contribuição para o debate.

Sou a favor da reserva de cotas para afrodescendentes em qualquer espaço onde eles sejam ou tenham sido preteridos, de maneira direta ou velada, hoje ou historicamente. Ponto. Creio que é uma ferramenta, dentre outras possíveis e necessárias; deve ser temporária e possui falhas.

Tenho várias razões para justificar minha posição, mas aqui vou falar de uma em especial: a adoção das cotas instalou a discussão sobre cotas – sim, porque neste país, a discussão muitas vezes vem depois do fato, principalmente tratando-se de temas tão delicados. E ”as cotas” trouxeram o tema das relações raciais à tona, colocaram, por assim dizer, a vaca na sala – e ela não vai pastar tão cedo. Primeira questão: quem é negro neste país? Esta é uma excelente pergunta que a gente está enfrentando talvez pela primeira vez neste país. Porque parece que antes nunca foi preciso fazê-la, não é mesmo? Como se os lugares estivessem sempre marcados. Meu primeiro palpite é: se você está perguntando quem é negro no Brasil, você não é. Porque neste país, quem é negro sabe. Quem já sofreu alguma discriminação, olhar suspeito, gracinha imbecil, desprezo explícito, sabe que é preto. E sabe também quem o é. Como disse um amigo, no Brasil só é negro quem pode. Não é uma questão de escolha.

”As cotas” propõem um olhar para si mesmo e para o outro mais profundo que, não parece, mas vai além da cor da pele. Historinha: um grande amigo meu sempre se orgulhou de seus traços negróides, fazendo questão de destacar que sua pele branca é apenas um detalhe em meio a traços evidentes de afrodescendência ( a boca, o nariz, etc.). Casado com uma mulher ”morena”, teve filhos de tez mais clara que a mãe, mais escura que a dele. Pois ele se queixava comigo da injustiça das cotas _ não por acaso, os filhos estão em idade pré-vestibular. E eu sugeri que os filhos utilizassem as cotas. Ele sorriu amarelo, indeciso entre saber se eu fora irônica ou brincalhona. Porque em momento nenhum passou pela cabeça dele que pudesse ser sério. Mas eu estava falando seríssimo, trata-se de afrodescendentes e se não são pobres, tão pouco podem ser considerados uma família abastada. O que impede meu amigo de considerar o uso das cotas é a consciência de que, apesar das dificuldades que enfrenta, os filhos são privilegiados; têm e tiveram mais oportunidades que os negros para quem as cotas são designadas. Muita gente acha bacana tirar onda de negão, dizer que gosta de black music e que tem até uma bisa escrava. Mas admitir a negritude para obter um privilégio só é tranqüilo para quem teve que assumi-la como demérito _ e, consequentemente, sabe que o que obtém agora não é privilégio algum.

Sim, haverá brancos nórdicos querendo se dar bem. Mas me diga, sinceramente: você acha que todo idoso que não paga passagem tem 65 anos? Todo professor com 40 horas só dá aula na universidade? A possibilidade de burla não inviabiliza o sistema, apenas aponta a necessidade de aperfeiçoamento. E quanto a ser ao problema ser social, educacional, por favor, gente, este argumento está esfarrapado! É simplesmente uma roupa que não cabe mais, a canela fica de fora, sabem como? Nem mesmo o movimento negro se preocupa mais em contradizer isto, porque agora quem o faz é o IBGE, o IPEA, até o jornal O Globo na semana passada. E a Surya disse melhor que todos eles nos comentários ao post de la otra Frida sobre o assunto.
Era isso.

Helena Costa

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