Por dever de ofício, eu acompanho essa discussão há anos, muito antes de virar um tema popular. Portanto, sempre me esquivo da conversa em fins de semana, feriados e fora do horário comercial – na maioria das vezes por pura preguiça. E também por uma certa rebeldia, porque existe a expectativa, para não dizer a cobrança, de que todo e qualquer negro tenha opinião, argumentos, dados e estatísticas sobre o assunto a qualquer momento. Mas la Otra levantou a lebre, pintaram comentários, e depois de muitas versões, segue minha contribuição para o debate.
Sou a favor da reserva de cotas para afrodescendentes em qualquer espaço onde eles sejam ou tenham sido preteridos, de maneira direta ou velada, hoje ou historicamente. Ponto. Creio que é uma ferramenta, dentre outras possíveis e necessárias; deve ser temporária e possui falhas.
Tenho várias razões para justificar minha posição, mas aqui vou falar de uma em especial: a adoção das cotas instalou a discussão sobre cotas – sim, porque neste país, a discussão muitas vezes vem depois do fato, principalmente tratando-se de temas tão delicados. E ”as cotas” trouxeram o tema das relações raciais à tona, colocaram, por assim dizer, a vaca na sala – e ela não vai pastar tão cedo. Primeira questão: quem é negro neste país? Esta é uma excelente pergunta que a gente está enfrentando talvez pela primeira vez neste país. Porque parece que antes nunca foi preciso fazê-la, não é mesmo? Como se os lugares estivessem sempre marcados. Meu primeiro palpite é: se você está perguntando quem é negro no Brasil, você não é. Porque neste país, quem é negro sabe. Quem já sofreu alguma discriminação, olhar suspeito, gracinha imbecil, desprezo explícito, sabe que é preto. E sabe também quem o é. Como disse um amigo, no Brasil só é negro quem pode. Não é uma questão de escolha.
”As cotas” propõem um olhar para si mesmo e para o outro mais profundo que, não parece, mas vai além da cor da pele. Historinha: um grande amigo meu sempre se orgulhou de seus traços negróides, fazendo questão de destacar que sua pele branca é apenas um detalhe em meio a traços evidentes de afrodescendência ( a boca, o nariz, etc.). Casado com uma mulher ”morena”, teve filhos de tez mais clara que a mãe, mais escura que a dele. Pois ele se queixava comigo da injustiça das cotas _ não por acaso, os filhos estão em idade pré-vestibular. E eu sugeri que os filhos utilizassem as cotas. Ele sorriu amarelo, indeciso entre saber se eu fora irônica ou brincalhona. Porque em momento nenhum passou pela cabeça dele que pudesse ser sério. Mas eu estava falando seríssimo, trata-se de afrodescendentes e se não são pobres, tão pouco podem ser considerados uma família abastada. O que impede meu amigo de considerar o uso das cotas é a consciência de que, apesar das dificuldades que enfrenta, os filhos são privilegiados; têm e tiveram mais oportunidades que os negros para quem as cotas são designadas. Muita gente acha bacana tirar onda de negão, dizer que gosta de black music e que tem até uma bisa escrava. Mas admitir a negritude para obter um privilégio só é tranqüilo para quem teve que assumi-la como demérito _ e, consequentemente, sabe que o que obtém agora não é privilégio algum.
Sim, haverá brancos nórdicos querendo se dar bem. Mas me diga, sinceramente: você acha que todo idoso que não paga passagem tem 65 anos? Todo professor com 40 horas só dá aula na universidade? A possibilidade de burla não inviabiliza o sistema, apenas aponta a necessidade de aperfeiçoamento. E quanto a ser ao problema ser social, educacional, por favor, gente, este argumento está esfarrapado! É simplesmente uma roupa que não cabe mais, a canela fica de fora, sabem como? Nem mesmo o movimento negro se preocupa mais em contradizer isto, porque agora quem o faz é o IBGE, o IPEA, até o jornal O Globo na semana passada. E a Surya disse melhor que todos eles nos comentários ao post de la otra Frida sobre o assunto.
Era isso.
Helena Costa
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