Ainda estou me instalando na Casa do Cinquenta, esta mudança compulsória à qual resisto pero no mucho, porque a alternativa, como se sabe, é muito pior. Então, resignada, tento me acomodar nessa casa com o que tenho, criando meu próprio espaço, rejeitando o que é preestabelecido apenas por conveniência e hábito, tentando reconhecer e aceitar limitações reais. Nada fácil – mas ninguém disse que seria.
Alguns esqueletos te acompanham de casa em casa — ainda que os armários sejam trocados. Haja terapia para faxinar os porões, espantar fantasminhas e bichos papões, desarmar gambiarras e bombas de auto sabotagem.
Mas, verdade seja dita, também carrego de moradas anteriores arcas repletas de amizades bordadas durante muitos anos, com fios preciosos de empatia, solidariedade, acolhimento. Decoro a Casa dos Cinquenta com peças valiosas: nas paredes e estantes há registros de momentos incríveis; pela sala espalho almofadas grandes e macias recheadas de abraços, luminárias de sorrisos; guardo potes de mantimentos com especiarias dos lugares por onde passei; tenho rede para sonhar e outras tantas coisas boas que fazem de uma casa um lar.
Uma coisa que reparei, nos últimos tempos, é que há uma mudança de perspectiva. Tenho experimentado certo estranhamento ao esbarrar em algumas lembranças que me parecem muito distantes, embora, em alguns casos, tenham acontecido poucos anos atrás. Passo por uma rua que costumava ser um itinerário frequente mas saiu da minha rota e tenho essa sensação que vivi ali uma outra vida. Porque não se trata apenas do lugar: também muito do que eu pensava, queria, esperava então difere de hoje; percebo a mudança de atmosfera, outro cenário, trilha sonora, todo um conjunto de elementos familiares que se tornaram apenas reconhecíveis, como uma cidade visitada há muito tempo. Outra vida.
Talvez não seja uma exclusividade felina ter várias.

Helê
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