R.E.S.P.E.C.T

Já escrevi mentalmente várias anotações sobre a copa da Rússia mas esse vídeo de ontem não pode esperar: tem que ser exibido muitas e muitas vezes. Nele, a jornalista Júlia Guimarães se defende do assédio de um passante e revida, falando por si e por todas as mulheres:

 

 

A postura dela é absolutamente impecável; embora irritada e abalada com a postura do macho, Júlia retruca sem ofender (o que nem acho imprescindível, apenas impressionante que tenha conseguido). E ainda educa o cidadão – caso ele tenha a capacidade de aproveitar o ensinamento.

Na lenta  evolução das relações entre gêneros e no combate permanente ao machismo, depois de denunciar e expor talvez tenha chegado a hora de reagir e revidar. Ainda que isso me cause conflitos, dada minha índole pacifista e o caráter excessivamente belicoso que vivemos. Mas a imagem de uma mulher que além de se defender, também ataca –  armada apenas de inteligência e presença de espírito – tem um poder inegável.

É este tipo de imagem que precisa viralizar para denunciar o assédio – e não o assédio em si, captado em vídeos idiotas de brasileiros que insistem em nos envergonhar.

Aretha Franklin já mandou essa letra – inclusive soletrou – mas ainda é preciso ouvir a Júlia dizer o que queremos: respeito.

Helê

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Marli

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Sobre feminismo, origens e referências, eu queria dizer que Marli Pereira Soares foi minha primeira representação de mulher maravilha. Sim, teve a Malu Mulher, a Linda Carter, a TV Mulher, a Simone cantando “Começar de novo” e emocionando a minha mãe, recém-separada. E teve também a Marli. Lembro com uma clareza impressionante (para quem tem a memória esburacada feito a minha) dessa mulher dizendo “Tenho pavor de barata. De polícia, não”. E da foto dela passando em revista um batalhão e apontando os responsáveis pela morte do irmão. Isso em 1979, em plena ditadura militar – e eu com longínquos 10 anos de idade. Marli Pereira, uma precursora na coragem e no sofrimento de milhares de mulheres negras brasileiras que choram seus parentes mortos pelo Estado – seja por omissão, incompetência ou genocídio puro e simples.

Helê

Genial Ferrante

Começando a subir as belas escadarias de madeira do Centro Cultural dos Correios, a ascensorista me chamou: “Não quer vir de elevador? Ou quer fazer exercício?” Um pouco sem graça aceito a oferta, e ela, durante a viagem de dois andares, fala com desenvoltura sobre a história do prédio, num entusiasmo surpreendente – que foi uma escola, que é de 1821, etc, etc. Na descida, me olhou de cima a baixo e elogiou sem nenhum pudor: “Você é bem estilosa, gostei. Muito bem!” E ainda fez nova propaganda do Centro: “Já viu a [peça] Chica da Silva?” Saí pensando que talvez ela devesse ficar na recepção, recebendo os visitantes, e não ali dentro, naquela viagem curta em que mal consegue contar tudo o que sabe sobre o local. Será que a peguei bem-humorada, apenas, ou há ali um talento subaproveitado? Simpatia, habilidade e conhecimento sobre o local de trabalho além do necessário para a função. Tivesse tido oportunidade – que eu estou levianamente deduzindo que faltou –, estaria ela conduzindo um elevador, apenas?

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a_amiga_genial__-_ferrante_2015_okQuando estou vendo muitos episódios seguidos de uma série, ou quando estou lendo um livro marcante, eu mentalmente mimetizo o narrador ou algum personagem. Fico sob a influência daquele estilo, daquele modo de estar no mundo. Por alguns dias ou semanas eu penso a partir daquela perspectiva, ou imagino como o autor (ou personagem) pensaria sobre. Agora estou under influence de Elena Ferrante, minha quase xará (e também das Gilmore Girls, mas esse é outro post). Acabei de ler o primeiro livro da tetralogia e me sinto imersa no universo desse livro incrivelmente bem escrito, que vai mostrando sua qualidade aos poucos e no final te torna refém; você pensa, aliviada: “Ufa, ainda bem que tem mais três!”. Para mim está tendo um efeito quase terapêutico (qual bom livro não tem?): voltei a fatos e pessoas da minha vida que pensei esquecidos. Mas também entrei em contato com emoções e sensações que talvez não quisesse lembrar. Ferrante, além de observadora sagaz, encontra quase sempre le mot juste, descrevendo com clareza o que vivenciamos com imprecisão. E realiza, com muita perspicácia, esse truque de prestidigitação literária, que consiste em: contar uma história que parece muito distante de você – duas meninas beirando a miséria na Itália do pós-guerra – e de repente, tá-rá! É sobre você. E sobre suas escolhas, sombras, sentimentos inconfessos, desejos sufocados, aquela parte com a qual a gente não gosta de lidar nem com luvas: mesquinhez, vergonha, inveja, derrota, maldade, fraqueza. E o mais alarmante: o livro mostra como essa matéria também constitui nossa relação com aqueles que a gente ama e quer bem, não só com rivais ou vilões de ocasião. E ainda constata que sentimentos ruins ou pouco nobres podem impulsionar conquistas. Portanto, em “A amiga genial” aquela sensação agradável de se reconhecer no que o outro escreve vem misturada com um desconforto irreprimível em muitos momentos; pode ser assustador. Ou revelador. Ou ambos.

Pode ser também que eu esteja projetando demais, admito. Li algumas resenhas “isentonas”, sempre observando o outro: elas, as meninas; a Nápoles e seus pobres, os anos 1950, tudo lááá longe. Para mim tudo aquilo foi ficando cada vez mais familiar com o passar das páginas; mesmo a violência entre pais e filhos, que não vivi, nunca esteve fora do meu radar (talvez apenas duas ruas ou casas depois). Quase todas as matérias e resenhas sobre o livro, assim como a orelha e a contracapa, repetem adjetivos como brutal e violento para descrever a história ou o estilo de Elena Ferrante. Mas talvez violento mesmo seja o choque ao se reconhecer tanto numa história tão íntima e singular.

“A amiga genial” também é sobre gênero, classes sociais e os esforços, mais ou menos desesperados, para achar uma saída da pobreza; é sobre caminhos, tropeços e atalhos para fugir do que parece inexorável. Como escapar de condições estabelecidas muito antes de você e que parecem fadadas a permanecer, no matter what. Condições, claro, mais dramáticas para as mulheres. Não consigo evitar a frustração ao pensar em gerações de mulheres talentosas, inteligentes, criativas que foram perdidas pelo atraso do mundo, calibrado pelo machismo castrador, inseguro e burro. E em tantas outras que até hoje ficam pelo caminho, em postos aquém de sua capacidade, mesmo prenhes de potencial. Under influence, eu avisei.

Helê

Radfilha

Dia desses a gente conversava antes de dormir sobre religião, Deus e quetais – a pessoa, agora nem tão pequena, adora fazer questionamentos teológicos – e aí eu contei que quando ela era pequena dizia “Em nome do pai, da mãe, do filho, do Espírito Santo, Amém”. Ela riu muito, para completar depois, entre brincalhona e séria: “Se fosse hoje eu ia dizer “Em nome do pai, da mãe, da filha, do filho, do Espírito Santo e Santa, Amém”. Quer dizer.

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Helê

Você é feminista?

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Não quero defender tese alguma – pelo menos não por ora.

Mas é que eu li este texto (que infelizmente está em inglês, e surpeendentemente está na Cosmopolitan), depois de ler esse outro, e gostaria muito de ouvir as respostas de quem por ventura passsar por aqui.

Desde já agradecida.

Helê, feminista.

8 de março

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 Helê

Da opressão da beleza

tootsie-749288Vi esse vídeo ontem no Feissy e compartilhei na hora (coisa que faço cada vez mais raramente). Fiquei muito, muito comovida com o que Dustin Hoffman diz e também com sua emoção genuína e despretensiosa – ele não está promovendo um novo longa ou livro, mas falando de um filme que rodou há décadas. Dustin relembra “Tootsie”, megasucesso em 1982, em que vive um ator desempregado que consegue um papel e sucesso se fazendo passar por uma mulher.

“Como eu seria diferente se eu tivesse nascido mulher?” Hoffman encontra a resposta logo após  conseguir se passar por uma e  sentir, ato contínuo, a opressiva necessidade de ser bela. Sensível, ele percebe com pesar todas as  pessoas interessantes que deixou de conhecer porque foi adestrado para exigir determinadas credenciais femininas antes de sequer se  aproximar. Ele conclui com dificuldade, a voz muito embargada, sobre “Tootsie”: “Para mim nunca foi uma comédia”.

Aí você pensa: ‘Tá, ok, mas o que tem isso a ver? O cara tá falando da experiência dele ao fazer um filme  30 anos atrás…” E poucas horas depois eu vejo no tumbrl que Marion Bartoli, tenista francesa de 28 anos que venceu o torneio de Wimblendon, está sofrendo bullying virtual porque é “muito feia para ganhar”.

Ganhar um dos quatro  campeonatos de tênis mais importantes do mundo. Não o Ford Models ou Miss Universo, mes amis.

I rest my case.

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Matéria do Daily Mail sobre os ataques à Marion  

Helê

Capitus e Bentinhos

A mulher enganou o diabo, diz o diabo e dizem, sobretudo, os enganados. Abandonados, traídos e esquecidos não faltam no cancioneiro popular, nem mulheres perversas. Ou aquelas que simplesmente não querem mais, e por isso viram bruxas. Mas há outro tipo que vez por outra surge em notas musicais e eu acho particularmente interessante: as dissimuladas, escorregadias, com dois centímetros a menos da honestidade esperada numa relação; as que aprontam e enlouquecem seus amados que, no entanto, permanecem com elas, entre lamentos e resignação.

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A primeira dessas com a qual esbarrei (e me encantei) foi “A Rosa” do Chico, aquela que ele já apresenta dizendo: “arrasa/o meu projeto de vida”. Assim, direto, no primeiro verso, como se fosse descrever a pior das megeras. Mas completa: “Querida, estrela do meu caminho”. E por aí ele segue, fazendo conosco o que ela faz com ele: dribles, jogo de corpo, dando uma no ferro e outra na ferradura. A Rosa some nas altas da madrugas mas, coitada, trabalha de plantonista. Tem incongruências, como visitar a família em São Paulo e voltar descascando; sair pra comprar cigarro e voltar com coisas do norte. Mas, bolas, inventa cada carícia e é tão fogosa, que o próprio cara desculpa seus deslizes: “A santa/às vezes me chama Alberto/De certo sonhou com alguma novela”. Ela é tão viva, e divertida e livre que ao fim da música estamos todos, como Chico, rendidos aos seus encantos – e esperando que ela um dia volte pra casa.

Outra mulher difícil, essa bem mais malvada, é a descrita por Aldir Blanc em “Incompatibilidade de gênios”. Acaba levando o homem a pedir a separação, e toda a canção trata-se dele explicando como chegou a este estágio – para alguém que eu suponho seja um juiz, já que é tratado como “Dotô”. Ao contrário da Rosa, dessa só sabemos só os podres , e por isso mesmo impressiona que ele tenha demorando tanto para se rebelar. Pra início de conversa, a mulher muda a estação do rádio no jogo do Flamengo – o que por si só justifica anulação de casamento. A malvada leva a mãe pra morar com eles e convida os cobradores a entrar – e ainda manda sentar! Acho um primor a maneira elegante como ele fala que ela se nega a transar: “Durante dez noites me faz jejuar”’.  Ela deve amar o cara, pois recorre a expedientes heterodoxos para mantê-lo (“Coou/meu café na calça pra me segurar”), mas  beira o sadismo: sequer lhe assopra um cisco no olho (“falou que por ela eu podia cegar”).  Mas o cidadão só decide dar um basta quando ela sonha com ele, manda jogar no bicho – no burro – e acerta a dezena, a centena e o milhar.

Toquinho também descreve um homem absolutamente entregue a uma mulher que não parece corresponder a devoção. Em “Doce vida”, ele praticamente pede: me engana que eu gosto.

“Diga que dessa vez foi tudo intriga/Conta a mentira mais antiga
A do cinema com uma amiga/Jura com as mãos fazendo figa
Mas fica aqui do meu lado”

Essa deve valer muito a pena porque apesar das escapadas mais óbvias e desculpas esfarrapadas (“cabeleireira, massagista e costureira”) , apesar dela espalhar que é solteira e chegar “depois das três da madrugada/com a pintura retocada/ligeiramente perfumada”, o cabra ainda espera, e perdoa. Afinal, “toda rosa tem espinhos” e ele acredita no que quer: “bem no fundo/o seu dono sou eu”.

Malandras, cínicas, safadas? Otários, cornos, manés? Perigoso classificar, como sempre; eu não me arrisco. Sei que quando ouço essas canções sempre me divirto com a situação e com esses personagens. As mulheres me intrigam – há de haver um encanto muito especial nelas, parecem mesmo fascinantes. Também os homens são dignos de admiração, capazes de uma generosa dose de abnegação para superar não apenas os vacilos, mas o julgamento alheio para viver um amor que, apesar de tudo, lhes apetece. Talvez personifiquem a versão masculina da expressão “mulher de malandro”: apanham (num sentido figurado) mas continuam juntos. E elas, faceiras, ardilosas, maduras, mantém seus amores sem que isso lhes cerceie a liberdade. No fundo, acho que é isso que  me agrada nessas canções: certa inversão de valores (machistas) e alguma desconfiança de que  talvez sejam apenas as versões masculinas (inseguras, fantasiosas) de Bentinhos miseravelmente apaixonados por essas Capitus pós-modernas, independentes, felizes, donas de seus narizes.

Helê

(Há anos tenho essa ideia de pleilist e nunca parei para fazê-la, de fato – talvez buscando a perfeição, essa desculpa disfarçada de virtude. O post estava todo rascunhado na cabeça e também no word, mas o último parágrafo só nasceu agora, pouco antes da publicação – consequetemente, o título. Nada não, é que me intrigam os misteriosos caminhos da criação).

Carro da discórdia

8h30 da manhã. O vagão do Metrô, vazio. As mulheres se acomodam nos bancos laterais, e ainda assim sobram lugares. O meio do vagão permanece completamente desocupado.

Alguns homens distraídos entram no vagão e o segurança do Metrô informa: tem que sair, neste horário o carro é exclusivo para as mulheres.

Um deles está visivelmente irritado. Alto. Mais de 50, menos de 60 anos. Atravessa o vagão, contrariado, e bate a cabeça na alça que pende do teto da composição. O trem é novo, modelo moderno, por isso ele consegue mudar de vagão sem precisar sair para a plataforma.

As portas se fecham, e dez segundos depois o homem está de volta. Senta-se em um dos muitos bancos vazios, de braços cruzados e cara fechada. Nenhuma das mulheres parece se importar muito.

***

Essa historinha verídica, que aconteceu ontem de manhã, ilustra bem o desconforto causado por uma lei estadual absurda, como já foi muito bem explicado aqui pela Helê.

O carro das mulheres faria sentido, se é que poderia fazer algum, em um metrô superlotado, com vagões separados, cenário em que abusos podem ocorrer – e ainda ocorrem, muito, sem que ninguém fique sabendo, sem que os agressores sejam punidos, sem que as vítimas sejam ouvidas.

Mas em um trem completamente vazio, em que os vagões se comunicam internamente, qual é o sentido de se manter o confinamento das mulheres em um vagão exclusivo? Se não tinha cabimento antes, agora menos ainda.

O segurança do Metrô está apenas fiscalizando o cumprimento de uma lei. Não vejo nada de errado nisso. Errada está a lei, que foi criada sob falsas premissas e portanto obviamente apresenta uma solução completamente equivocada.

***

O que nos leva à questão da representação feminina na política. Precisamos de mulheres legislando sobre as questões que impactam outras mulheres. Não basta ter uma presidenta, é preciso ter bancadas femininas representativas. Não adianta ter parlamentares bem intencionados, ou veremos eternamente os tiros saindo pela culatra: ao invés de conscientizar os agressores e protegermos as vítimas, teremos sempre, somente, cada vez mais, homens emburrados porque são impedidos de entrar em um vagão – sem que nenhuma lógica sustente essa proibição.

-Monix-

Ir onde o povo está

Depois da fase de “queimar sutiãs” (mesmo que metafóricos), das conquistas pós-feministas e até mesmo do retrocesso dos últimos anos (que trouxeram à pauta termos complicados como backlash e slut shaming), parece que o feminismo está voltando a ser tendência*. Isso é ótimo, mas até hoje, em pleno século XXI**, ainda há quem ache que “tudo já foi conquistado”, “feminismo pra quê, se as mulheres mandam no mundo” etc.

Então o “movimento” (eu falaria mais em “movimentos feministas, porque são tantos) está saindo novamente às ruas, o que, nunca é demais repetir, eu acho ótimo. Por exemplo, a Marcha das Vadias me parece uma ótima resposta, ao mesmo tempo bem-humorada e politizada, à cultura de slut shaming que citei ali em cima. Já os protestos sem-noção do Femen eu não curto, porque não parecem contribuir para ampliar a reflexão dos segmentos menos progressistas da sociedade – e provavelmente atingem o objetivo oposto. É uma abordagem útil para mobilizar quem já é convertido, mas dá uma visibilidade muito negativa para quem não gosta de pensar no assunto.

Para falar com essas pessoas, soa bem mais eficaz dizer que “pessoas feministas são mais felizes” – ainda mais quando a afirmativa é baseada em pesquisa científica (por mais furada que seja a metodologia, e por mais clichês que sejam as conclusões), e publicada em revista voltada a um público bastante jovem e curioso.

Todas as militâncias têm lá o seu papel, mas quando eu vejo a cultura mainstream incorporando temas antes restritos às vanguardas, não posso deixar de achar uma coisa boa.

-Monix-


* Pronuncia-se “temdemça” :P
** E a gente achava que este seria um tempo tão moderno. Hmpf.

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