A mulher enganou o diabo, diz o diabo e dizem, sobretudo, os enganados. Abandonados, traídos e esquecidos não faltam no cancioneiro popular, nem mulheres perversas. Ou aquelas que simplesmente não querem mais, e por isso viram bruxas. Mas há outro tipo que vez por outra surge em notas musicais e eu acho particularmente interessante: as dissimuladas, escorregadias, com dois centímetros a menos da honestidade esperada numa relação; as que aprontam e enlouquecem seus amados que, no entanto, permanecem com elas, entre lamentos e resignação.

A primeira dessas com a qual esbarrei (e me encantei) foi “A Rosa” do Chico, aquela que ele já apresenta dizendo: “arrasa/o meu projeto de vida”. Assim, direto, no primeiro verso, como se fosse descrever a pior das megeras. Mas completa: “Querida, estrela do meu caminho”. E por aí ele segue, fazendo conosco o que ela faz com ele: dribles, jogo de corpo, dando uma no ferro e outra na ferradura. A Rosa some nas altas da madrugas mas, coitada, trabalha de plantonista. Tem incongruências, como visitar a família em São Paulo e voltar descascando; sair pra comprar cigarro e voltar com coisas do norte. Mas, bolas, inventa cada carícia e é tão fogosa, que o próprio cara desculpa seus deslizes: “A santa/às vezes me chama Alberto/De certo sonhou com alguma novela”. Ela é tão viva, e divertida e livre que ao fim da música estamos todos, como Chico, rendidos aos seus encantos – e esperando que ela um dia volte pra casa.
Outra mulher difícil, essa bem mais malvada, é a descrita por Aldir Blanc em “Incompatibilidade de gênios”. Acaba levando o homem a pedir a separação, e toda a canção trata-se dele explicando como chegou a este estágio – para alguém que eu suponho seja um juiz, já que é tratado como “Dotô”. Ao contrário da Rosa, dessa só sabemos só os podres , e por isso mesmo impressiona que ele tenha demorando tanto para se rebelar. Pra início de conversa, a mulher muda a estação do rádio no jogo do Flamengo – o que por si só justifica anulação de casamento. A malvada leva a mãe pra morar com eles e convida os cobradores a entrar – e ainda manda sentar! Acho um primor a maneira elegante como ele fala que ela se nega a transar: “Durante dez noites me faz jejuar”’. Ela deve amar o cara, pois recorre a expedientes heterodoxos para mantê-lo (“Coou/meu café na calça pra me segurar”), mas beira o sadismo: sequer lhe assopra um cisco no olho (“falou que por ela eu podia cegar”). Mas o cidadão só decide dar um basta quando ela sonha com ele, manda jogar no bicho – no burro – e acerta a dezena, a centena e o milhar.
Toquinho também descreve um homem absolutamente entregue a uma mulher que não parece corresponder a devoção. Em “Doce vida”, ele praticamente pede: me engana que eu gosto.
“Diga que dessa vez foi tudo intriga/Conta a mentira mais antiga
A do cinema com uma amiga/Jura com as mãos fazendo figa
Mas fica aqui do meu lado”
Essa deve valer muito a pena porque apesar das escapadas mais óbvias e desculpas esfarrapadas (“cabeleireira, massagista e costureira”) , apesar dela espalhar que é solteira e chegar “depois das três da madrugada/com a pintura retocada/ligeiramente perfumada”, o cabra ainda espera, e perdoa. Afinal, “toda rosa tem espinhos” e ele acredita no que quer: “bem no fundo/o seu dono sou eu”.
Malandras, cínicas, safadas? Otários, cornos, manés? Perigoso classificar, como sempre; eu não me arrisco. Sei que quando ouço essas canções sempre me divirto com a situação e com esses personagens. As mulheres me intrigam – há de haver um encanto muito especial nelas, parecem mesmo fascinantes. Também os homens são dignos de admiração, capazes de uma generosa dose de abnegação para superar não apenas os vacilos, mas o julgamento alheio para viver um amor que, apesar de tudo, lhes apetece. Talvez personifiquem a versão masculina da expressão “mulher de malandro”: apanham (num sentido figurado) mas continuam juntos. E elas, faceiras, ardilosas, maduras, mantém seus amores sem que isso lhes cerceie a liberdade. No fundo, acho que é isso que me agrada nessas canções: certa inversão de valores (machistas) e alguma desconfiança de que talvez sejam apenas as versões masculinas (inseguras, fantasiosas) de Bentinhos miseravelmente apaixonados por essas Capitus pós-modernas, independentes, felizes, donas de seus narizes.
Helê
(Há anos tenho essa ideia de pleilist e nunca parei para fazê-la, de fato – talvez buscando a perfeição, essa desculpa disfarçada de virtude. O post estava todo rascunhado na cabeça e também no word, mas o último parágrafo só nasceu agora, pouco antes da publicação – consequetemente, o título. Nada não, é que me intrigam os misteriosos caminhos da criação).
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