História de livro

M. é uma bibliófila – eu ia dizer como eu, mas não tenho esse direito, ela me supera em muito. O amor aos livros era uma das coisas que nos unia, assim como uma grande amiga em comum e um emprego. Bom, esse também nos separava porque tínhamos cargos hierarquicamente desiguais. Mas para efeito dessa história valem nossas afinidades, e compartilhávamos o prazer da leitura com entusiasmo: podíamos falar por bastante tempo sobre o que estávamos lendo ou o que pretendíamos ler – fila que, estranhamente, nunca diminui.

Então, quando ela me pediu “Sonhei que a neve fervia” emprestei com gosto, porque nada agrada mais um leitor do que proporcionar boa leitura para outro. Sou generosa mas ciumenta com meus livros (anoto numa listinha os empréstimos). Especialmente os de gente que eu amo, como esse. Mas nem anotei quando emprestei o “Sonhei” para M., ninguém poderia ter mais cuidado com um livro do que ela.

No trabalho, vez ou outra eu perguntava se ela estava gostando, mas muito rapidamente porque não queria pressioná-la – nada mais arriscado do que jogar sua expectativa sobre os outros. Passou pela minha cabeça que M. estava demorando um pouco, já que costumava ser bem rápida, mas não me preocupei. Até que um dia ela trouxe de volta o livro, mas com o constrangimento de quem o tinha perdido. E começou a contar a história de como, de fato, o perdeu e depois recuperou.

Ela contava a história aflita, chegou a ficar vermelha algumas vezes. Sua angústia se devia ao fato de considerar que não se tratava apenas de um livro: além da dedicatória para mim e para minha filha, havia sublinhados, exclamações, comentários que nunca seriam recuperados; isso a atormentou por dias. (E devo dizer que foi exatamente a Fal que me libertou de certa reverência com o livro: com o aval dela passei a me sentir mais à vontade para imprimir minhas marcas, especialmente nos dela.) O que afligia M. era o mesmo que me consolava: a importância que dava àquele exemplar. Só alguém que realmente ama os livros e sabe do valor que eles têm sente tamanho pesar por deixar escapar um objeto que, afinal, poderia ser reposto. Isso a livrava de qualquer culpa, se houvesse alguma. Mas não havia: o meu livro, devidamente rabiscado, estava nas minhas mãos. Como?

Inconsolável com a perda, M. providenciou um novo e contatou a Fal, através da nossa amiga em comum (que vem a ser minha sócia nesse blogue), para que ele ao menos pudesse ter também uma dedicatória. Com o que a Fal concordou prontamente. Então, num inesperado plot twist (como devem ser todos), alguém entrou em contato com a Fal, via e-mail, avisando que tinha encontrado um livro dela, num banco 24 horas no Rio de Janeiro (onde M. havia voltado e procurado em vão). Lendo a orelha do livro descobriu o blogue da Fal e entrou em contato porque, como estava autografado, ela poderia conhecer a dona. Também imaginou que deveria ser importante, e então mais uma pessoa entrou nessa ciranda e trouxe de volta para mim o “Sonhei”, que agora carrega entre suas páginas também essa história de mulheres, cuidado e livros.

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O “Sonhei” acomodado na minha estante, com seus irmãos e a companhia de Rosa, Isabel e Joel, entre outros.

Isso aconteceu já há alguns anos, mas só hoje, depois de assistir à “A sociedade literária e a torta de casca de batatas” (um bom filme baseado num livro incrível), me ocorreu contar aqui; o post veio quase completo assim que pensei em escrevê-lo. Acho que foi minha maneira de reverenciar os livros e seus poderes mágicos. E de pensar que às vezes a gente perde – livros, pessoas – mas as histórias e o afeto permanecem. O que te pertence volta pra você – ou nunca te abandona de fato.

Helê

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Diarices e leituras

Sem correr há semanas, não ando bem. Bússolas eu perco ou esqueço, mas a corrida me dá um caminho, ou vários. Agora, que tenho um tempo que não pedi, me sobram faltas.

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E o entorno não ajuda: o mal-estar deixou de ser interino e as novas que chegam nunca são boas.

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Em tempos difíceis, back to basics – lição que aprendi nessa fonte inesgotável de sabedoria ocidental, os seriados americanos. Fui cuidar do corpo para tratar da alma; a moça que tem doce e beleza no nome, calor na ponta dos dedos, mandou cuidar da comida, do sono, do que entra e do que sai – do básico, em resumo.

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4c9987fed38c659e24a8ac6209163aa0Menos digital e mais analógico. Mergulhei na ficção dos livros, nadei braçadas vigorosas e terminei ofegante, claro. Elena Ferrante me inquieta demais, coloca uma lupa implacável nas minhas relações, pra não falar em mim mesma. Uma leitura que revira cantos propositalmente esquecidos, arranca cascas de feridas mal saradas, me expõe. Brilhante, mas perturbador. Doloroso, mas bom. Feito terapia.

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No intervalo forçado entre o segundo e o terceiro livro, fui conhecer A vida no campo e ahhh!, ali sim, estou encontrando acolhida, descanso, proteção. Crônicas de gentileza e sensibilidade, algum humor, outras belezas. Também é fundo, mas não machuca: é leitura que abre as janelas, passa um café e senta com você na varanda (ainda que você more no 8o andar de uma rua barulhenta). Ficarei por lá enquanto puder, antes de voltar a Nápoles.

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Ler o “Arquipélago” atravessando a Baía de Guanabara soava mais que adequado: era quase um complemento à leitura. Mas ontem, enquanto lia “A vida do Campo” no metrô, perdi a estação em que deveria descer. O que também tem lá a sua poesia, você há de convir.

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Para amansar um sono sempre indócil, experimentei dormir sem luz alguma. Para minha grande surpresa, descobri que a escuridão era bem menos intensa do que pensava.

Guardei a metáfora, pode ser útil.

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54ff983a23b47-books-cooley-de“Só o que é íntimo me interessa”, diz o Joel a certa altura. A ideia me agrada imenso, e além do mais admiro quem formula assim uma preferência, com certeza e destemor. Sou incapaz de frases definitivas – o que lamento muitíssimo, a vida parece mais leve para quem duvida menos. Se a frase fosse minha, eu diria que só o íntimo têm me interessado ultimamente. O superficial tem me parecido vão – e quase tudo tem me soado muito superficial nos tempos que correm.

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Então me lembro do que me respondeu Isabel Duarte Soares para um comentário meu em seu blogue primoroso (quando eu ainda tinha coragem de comentar lá). Ela me ensinou algo sobre a introversão como a centralidade do mundo interior ou algo assim. Volto lá para conferir. Procuro um pouco (já faz algumas semanas que li), esbarro em um post em que ela fala do Joel e penso “que coincidência!”. Até encontrar o post que procurava e ver que o título é “Talvez me falte a corrida...”. Então acho que o ciclo se completou e que encontrei um desfecho para este post.

Helê

Genial Ferrante

Começando a subir as belas escadarias de madeira do Centro Cultural dos Correios, a ascensorista me chamou: “Não quer vir de elevador? Ou quer fazer exercício?” Um pouco sem graça aceito a oferta, e ela, durante a viagem de dois andares, fala com desenvoltura sobre a história do prédio, num entusiasmo surpreendente – que foi uma escola, que é de 1821, etc, etc. Na descida, me olhou de cima a baixo e elogiou sem nenhum pudor: “Você é bem estilosa, gostei. Muito bem!” E ainda fez nova propaganda do Centro: “Já viu a [peça] Chica da Silva?” Saí pensando que talvez ela devesse ficar na recepção, recebendo os visitantes, e não ali dentro, naquela viagem curta em que mal consegue contar tudo o que sabe sobre o local. Será que a peguei bem-humorada, apenas, ou há ali um talento subaproveitado? Simpatia, habilidade e conhecimento sobre o local de trabalho além do necessário para a função. Tivesse tido oportunidade – que eu estou levianamente deduzindo que faltou –, estaria ela conduzindo um elevador, apenas?

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a_amiga_genial__-_ferrante_2015_okQuando estou vendo muitos episódios seguidos de uma série, ou quando estou lendo um livro marcante, eu mentalmente mimetizo o narrador ou algum personagem. Fico sob a influência daquele estilo, daquele modo de estar no mundo. Por alguns dias ou semanas eu penso a partir daquela perspectiva, ou imagino como o autor (ou personagem) pensaria sobre. Agora estou under influence de Elena Ferrante, minha quase xará (e também das Gilmore Girls, mas esse é outro post). Acabei de ler o primeiro livro da tetralogia e me sinto imersa no universo desse livro incrivelmente bem escrito, que vai mostrando sua qualidade aos poucos e no final te torna refém; você pensa, aliviada: “Ufa, ainda bem que tem mais três!”. Para mim está tendo um efeito quase terapêutico (qual bom livro não tem?): voltei a fatos e pessoas da minha vida que pensei esquecidos. Mas também entrei em contato com emoções e sensações que talvez não quisesse lembrar. Ferrante, além de observadora sagaz, encontra quase sempre le mot juste, descrevendo com clareza o que vivenciamos com imprecisão. E realiza, com muita perspicácia, esse truque de prestidigitação literária, que consiste em: contar uma história que parece muito distante de você – duas meninas beirando a miséria na Itália do pós-guerra – e de repente, tá-rá! É sobre você. E sobre suas escolhas, sombras, sentimentos inconfessos, desejos sufocados, aquela parte com a qual a gente não gosta de lidar nem com luvas: mesquinhez, vergonha, inveja, derrota, maldade, fraqueza. E o mais alarmante: o livro mostra como essa matéria também constitui nossa relação com aqueles que a gente ama e quer bem, não só com rivais ou vilões de ocasião. E ainda constata que sentimentos ruins ou pouco nobres podem impulsionar conquistas. Portanto, em “A amiga genial” aquela sensação agradável de se reconhecer no que o outro escreve vem misturada com um desconforto irreprimível em muitos momentos; pode ser assustador. Ou revelador. Ou ambos.

Pode ser também que eu esteja projetando demais, admito. Li algumas resenhas “isentonas”, sempre observando o outro: elas, as meninas; a Nápoles e seus pobres, os anos 1950, tudo lááá longe. Para mim tudo aquilo foi ficando cada vez mais familiar com o passar das páginas; mesmo a violência entre pais e filhos, que não vivi, nunca esteve fora do meu radar (talvez apenas duas ruas ou casas depois). Quase todas as matérias e resenhas sobre o livro, assim como a orelha e a contracapa, repetem adjetivos como brutal e violento para descrever a história ou o estilo de Elena Ferrante. Mas talvez violento mesmo seja o choque ao se reconhecer tanto numa história tão íntima e singular.

“A amiga genial” também é sobre gênero, classes sociais e os esforços, mais ou menos desesperados, para achar uma saída da pobreza; é sobre caminhos, tropeços e atalhos para fugir do que parece inexorável. Como escapar de condições estabelecidas muito antes de você e que parecem fadadas a permanecer, no matter what. Condições, claro, mais dramáticas para as mulheres. Não consigo evitar a frustração ao pensar em gerações de mulheres talentosas, inteligentes, criativas que foram perdidas pelo atraso do mundo, calibrado pelo machismo castrador, inseguro e burro. E em tantas outras que até hoje ficam pelo caminho, em postos aquém de sua capacidade, mesmo prenhes de potencial. Under influence, eu avisei.

Helê

Tijucamérica

Lembro de quando conheci o livro, ou quando tomei conhecimento de sua existência. Foi numa noite memorável, em que saí à procura de alento e encontrei cerveja e celebração. Era o segundo turno da eleição presidencial do ano passado, e durante todo o dia o fogo cruzado de informações contraditórias, alarmistas e preocupantes deixou o meu sistema muito nervoso. Aí a Lôra disse que tava no bar com uma turma bacana e lá fui eu. Ângela foi me apresentando aos outros ansiosos eleitores da Dilma enquanto acompanhávamos a apuração. Depois de algum sofrimento, comemoramos como se fosse um campeonato – embora desde então a minha alegria fosse menos com a “nossa” vitória e mais pela derrota do outro. A turma foi crescendo até que alguém sugeriu: “Vamos pro Chico!”, e segui como se soubesse onde era. Já não importava o destino, eu havia sido incorporada ao grupo e era boa a companhia. Além 544913_826520687368508_4574069953765195040_nda Lôra e do Cláudio, gente interessante como o professor Luiz Antônio Simas e o jornalista José Trajano. Como defini mais tarde, estava entre a fina flor da esquerda tijucana, todos espontanea e momentaneamente irmanados — ainda que fosse possível perceber variados tons de vermelho entre nós. No rubro mais extremo, o do América, estava  o Trajano, que entre uma gelada e outra comentou sobre o livro que estava para lançar. Era uma história meio doida e divertida sobre craques revividos, que misturava inadivertidamente realidade e ficção.  


“Tijucamérica” foi lançado  em agosto no mesmo Bar do Chico. A Lôra me esperava com o meu exemplar, e consegui um autógrafo do autor, embebido em carinho e cerveja. Gentilíssimo, Trajano disse lembrar de mim e da noite da eleição; achei improvável, mas retribui a deferência escolhendo acreditar. Quando iniciei a leitura, uns dias depois,  não demorou para que eu fosse fisgada por esse  verdadeiro vaudeville carioca, ou seja lá qual for o  gênero em que caiba o enredo anárquico do Trajano. No livro, ele convoca uma seleção de religiosos pra lá de ecumênica e traz de volta grandes craques do seu Ameriquinha. Pretende reverter a decadência do clube e vê-lo campeão, levantando o moral da Tijuca lato sensu, aquela que começa nas imediações do Estácio e mistura fronteiras com a Muda, o Alto da Boa Vista, Grajaú e Vila Isabel, sem demarcações rígidas. Como um bom drible,  o livro finge que é sobre algo mas não é exatamente sobre aquilo  – ou é, mas não apenas. Parece que vai ser sobre o América mas vai além, contando saborosas histórias do futebol carioca e brasileiro. Esmiuça a história da Tijuca como eu nunca li antes, mas ultrapassa seus limites: também88128_gg  é sobre o Rio de Janeiro, sua gente, seus ídolos e ícones. Entretanto, em “Tijucamérica” os contornos da cidade não são delineados pela orla, mas pelo relevo dessa terra entre morros, banhada pelo rio Maracanã e coroada pelo estádio de mesmo nome. Há inúmeras estatísticas futebolísticas, escalações e placares, mas o futebol serve mesmo como lente através da qual Trajano olha para o Rio, o Brasil e também para a própria vida (desconfio que, no fundo no fundo, trata-se de um bem disfarçado livro de memórias). Essa ode irreverente à  Tijuca e ao subúrbio me divertiu, instruiu e comoveu – mais ou menos como aquele encontro com uma turma de sonhadores renitentes numa certa noite de outubro de 2014. O fecho de um  ciclo completo, redondo como deve descer uma cerveja gelada, encantador como uma tabela bem feita. Intensificou o sentimento pela minha aldeia, seus personagens e amigos como a Ângela: Tijucamor.

Helê

Livros

imagemSeguem aqui duas indicações, um de uma leitura recente e outra mais antiga, ambas muito prazeirosas.

Foi em alguma revista sobre corrida que soube de “Livre – a jornada de uma mulher em busca de um recomeço”; o título e a sinopse me instigaram o suficiente para comprá-lo.  Lá se foram algumas  semanas numa trilha sobre qual nunca ouvira falar , a Pacific Crest Trail, que cruza os EUA do México ao Canadá. Cheryl Strayed decidiu percorrê-la mesmo sem experiência anterior; acho quem nem ela sabia ao certo se procurava  se salvar ou se enterrar de vez, tentando achar o fio da meada da própria vida depois da morte da mãe. Seria um trail book do mesmo modo que há road movies. O livro foi indicado pela Oprah no seu clube de leitura –  o que me deixou com o pé atrás, que Ms. Winfrey é chegada numa auto-ajuda. E o livro vai virar filme tendo a Reese Queixinho Spoon como protagonista, o que também não me entusiasma. Mas a autora não parece ter culpa de nada isso; em nenhum momento o livro se arvora a ditar regras e conselhos. Ela quer apenas contar sua própria história, narrar essa fantástica travessia, e o faz com uma honestidade tocante. Recomendo, e vou até dar uma chance pra Reese quando o filme sair.

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13172_ggMalcolm X – uma vida de reinvenções” me chamou na loja. Eu procurava um presente para uma amiga, olhei pra ele, achei que as credenciais eram boas (Cia das Letras, Pulitzer) e quando chequei o preço estava em promoção. Fiz o que faz o pobre: ao invés de economizar, comprei um pra mim. Mas valeu a pena, o livro é um trabalho de fôlego de um acadêmico americano sobre a vida de Malcolm, que eu sempre achei fascinante.  Na definição precisa do autor, Manning Marable, “uma biografica mapeia a arquitetura social da vida de um indivíduo” – e é o que ele faz com maestria, traçando os contexto sociais, políticos e econômicos que emolduraram a vida de Malcom, começando pelo pai dele e indo até depois de sua morte. São décadas da história americana e da história negra no mundo, já que aborda importantes questões como o panafricanimso, islaminsmo e outras. Devorei o livro como se fosse uma ficção; até chorei com um final que eu sempre soube como seria.  Também acabou sendo uma maneira de voltar (ou permanecer) em Nova York, cidade adotada por Malcolm e cenário de partes cruciais no livro. Lendo um trecho em que ele conta a incrível  hospitalidade que experimentou na Arábia Saudita apenas por ser muçulmano, tive que recordar a fantástica acolhida que tive em uma igreja do Harlem, apenas por ser negra. Mas isso fica pra outro post; por ora ficam o teaser e a dica do livro.

Helê

Carolina entre os seus

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A 2ª Bienal do Livro de Brasília, que se encerrou nesta segunda-feira, homenageou vários escritores brasileiros e estrangeiros com grandes fotos exibidas em murais, ao lado de excertos de textos de suas autorias. Como o evento ocorreu na Esplanada dos Ministérios, cartão postal de Brasília, meca da política nacional e o principal centro de circulação de carros da cidade, foi um sinal de grande prestígio para o escritor ter seu nome, seu rosto e seus textos exibidos ali, em tamanho gigante, durante mais de uma semana. 

Fiquei muito feliz  ao ver o rosto da Carolina de Jesus estampado num mural enorme, que eu calculei em mais ou menos 5 m X 5m de dimensão, bem na entrada principal da Bienal. Era impossível não vê-la ao entrar na Bienal. Mais interessante ainda foi constatar que, ao lado de imagens de nomes consagrados como Eduardo Galeano, Ariano Suassuna, Ana Maria Machado, Naomi Wolff e Mia Couto, fulguravam o de Carolina e o da maior escritora de S. Tomé e Príncipe, Conceição Lima. Havia também outros escritores negros africanos e latino-americanos. Enfim, a negritude estava bem representada. Alvíssaras!

Christian Morais, jornalista, nosso leitor querido e  blogueiro convidado de hoje.

Lido por aí

Minhas leituras recentes compõem uma surpreendente sequência de livros tão bons quanto diferentes entre si. Às vezes eu passo semanas sem ler algo relevante e fico com medo de ter emburrecido, ou de ter perdido um dom. Mas aí eu me enamoro de um obra desavisadamente e ufa!, ainda sou uma Leitora, gozando as vantagens que esse passaporte premium me confere.

Nas últimas semanas estive em lugares incríveis com pessoas interessantíssimas, reais e ficcionais. A boa  maré começou com “A visita cruel do tempo“, indicação de R. que aguardou pacientemente o momento de ser finalmente aceita. Não foi na primeira página nem no primeiro capítulo, mas quando eu e o livro entramos no mesmo ritmo, como um galope bem-sucedido, só parei ao fim, arfando com criatividade da narrativa, a honestidade de uma ficção tão realista – por isto mesmo brutal e bela ao mesmo tempo.

imagesEm seguida acatei a sugestão de mi sócia, que também já aguardava sua vez na prateleira, “A vida imortal de Henrietta Lacks“,  um livro que eu não leria espontaneamente. A contracapa falava sobre umas tais células HeLa, importantíssimas para a ciência mas que eu ignorava totalmente. É sobre ciência e ética, mas é também sobre outras tantas questões não enunciadas: relações raciais e racismo os EUA, família, a vida rural americana, a obstinação em cumprir uma missão, antes mesmo de ter consciência completa dela. Ao mesmo tempo em que é uma história muito americana, poderia ser a história de muitas famílias negras da diáspora: onde lê-se Lacks poderíamos ler Silva, sem prejuízo da história. Só lendo para saber como e porque.

downloadPara me recompensar por uma meta alcançada, me dei de presente “Do que falo quando falo sobre corrida”, do Murakami, que é conhecidíssimo por vários outros livros e peças, menos por esse, que é uma espécie de biografia de sua vida nas pistas. Nunca havia lido nada dele, e confesso que temo não gostar tanto do ficcionista quanto gostei do corredor. Leitura saborosa, divertida e companheira, daquelas que você faz balançado a cabeça e concordando com várias ideias e compartilhando passagens – como quando ele diz que “Simpathy for the Devil” é ótima para correr (indeed!). Saber que trata-se de um oriental talvez tenha influenciado minha percepção, mas o fato é que considero  o  livro muito zen e espiritual, embora em nenhum momento se proponha a isso – acho que nem mesmo usa essas palavras. E apesar do apelo óbvio para quem corre, não se trata apenas disso, mas sobre como o autoconhecimento coloca você no caminho e no ritmo certos.

Há ainda mais duas paradas nessas minhas viagens literárias recentes, mas fico por aqui porque me alonguei mais que o recomendado. Se interessar, falo dos dois últimos.

Helê

África lusófona

Andei lendo sobre o Acordo Ortográfico (estou meio monotemática, mas juro que penso em outras coisas nos intervalos), e me deparei com este texto do angolano José Eduardo Agualusa em que ele não apenas defende a adoção do tratado internacional como vai além: defende que se Portugal não aceitar o acordo, Angola deve adotar a ortografia portuguesa. O argumento dele é no mínimo interessante:

Somos um país independente. Não devemos nada a Portugal. O Brasil tem cento e oitenta milhões de habitantes, e produz muito mais títulos, e a preços mais baratos, do que Portugal. Assim sendo, parece-me óbvio que temos mais vantagem em importar livros do Brasil do que de Portugal.

Enquanto isso, a Maria João mandou outro texto, dessa vez do moçambicano Mia Couto, sobre seu avô Jorge, que acaba contando também um pouco sobre como a literatura brasileira é importante para a formação cultural dos países da África lusófona.

Na altura [anos 1960,período final da ditadura colonial de Portugal em África], nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

Nós brasileiros nos acostumamos a lamentar muito a falta de conexão e identificação com nossos hermanos latino-americanos. Acabamos esquecendo de países que podem ter muito em comum conosco, além, obviamente, da língua. (E se você, como eu, acredita que a língua molda a forma de ver o mundo, vai concordar que só a língua já seria muito para se ter em comum.)

As relações entre os povos refletem, em grande parte, as relações entre os indivíduos, por óbvio. A gente olha para cima, no máximo para os lados – nunca para baixo. Eu posso imaginar como deve ser a vida dos milionários, e sei bem como vive a classe média brasileira, mas não faço a menor idéia de como é o dia-a-dia da minha empregada doméstica (quais são seus problemas, como é sua rotina, com o que ela sonha, por que ela sofre, como ela ama? Sei lá.) O mesmo acontece nas relações internacionais: a gente conhece a cultura americana de trás pra frente; a gente sabe que na Argentina, no México e no Chile as pessoas vivem mais ou menos os mesmos dilemas que nós aqui no Brasil; mas não temos a mínima pista de como é a sociedade angolana – ou a moçambicana. Aliás, a maioria de nós deve pensar que Angola, Moçambique, Madagascar, Zanzibar é tudo a mesma coisa, não é?

Ler os dois textos lincados neste post me fez sentir uma saudade do que nunca vi. Deu vontade de saber mais, como se de repente descobrisse uma parte da família que estava afastada, tipo primos distantes, que de repente se aproximam.

Primeira providência: ler Agualusa e Mia Couto.

-Monix-

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