Serena

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O uniforme que a Serena Williams usou em Roland Garros este ano não será aceito novamente “em respeito ao jogo e ao local“, afirmou um dirigente do torneio cujo nome eu não vou me dar ao trabalho de escrever aqui. Perguntado especificamente sobre o traje de Serena, esse macho afirmou “fomos longe demais”. Sim, ninguém foi tão longe quando Serena no tênis, monsieur. E é impressionante como uma mulher negra, de quem se exige força acima da média — de qualquer média — precisa ser contida, regulada, subjugada por normas que, se não existem, são rapidamente criadas. Uma mulher negra bem-sucedida incomoda muita gente, Serena Williams incomoda muito mais.
É de cair você sabe o que de onde.
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Serena não entrou na controvérsia e quando perguntada deu uma resposta espirituosa, fazendo um jogo de palavras para dizer que na moda não é bom se repetir (“you don’t want to be a repeat offender“). Ela conhece bem todas as regras do jogo para não se indispor com dirigentes, muito menos pra bater palma pra maluco dançar. A roupa já foi usada e amplamente noticiada: na ocasião, Serena fez referência ao filme “Pantera Negra” e dedicou seu retorno às quadras às mães que, como ela, tiveram problemas no parto. Essa palhaçada toda serviu para me ensinar uma palavra nova para algo que eu conheço há muito tempo: misogynoir, a parceria perversa entre o machismo e o racismo. Ah, também serviu para ensinar uma lição de marketing para quem produziu aquele clip vexatório que deveria melhorar a imagem do Neymala. A Nike mostrou como se apoia um atleta e o que é publicidade inteligente (venceu até a minha repulsa a fazer propaganda gratuita)
“Você pode tirar o traje de um super herói, mas nunca pode tirar seus superpoderes”.
Helê
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R.E.S.P.E.C.T

Já escrevi mentalmente várias anotações sobre a copa da Rússia mas esse vídeo de ontem não pode esperar: tem que ser exibido muitas e muitas vezes. Nele, a jornalista Júlia Guimarães se defende do assédio de um passante e revida, falando por si e por todas as mulheres:

 

 

A postura dela é absolutamente impecável; embora irritada e abalada com a postura do macho, Júlia retruca sem ofender (o que nem acho imprescindível, apenas impressionante que tenha conseguido). E ainda educa o cidadão – caso ele tenha a capacidade de aproveitar o ensinamento.

Na lenta  evolução das relações entre gêneros e no combate permanente ao machismo, depois de denunciar e expor talvez tenha chegado a hora de reagir e revidar. Ainda que isso me cause conflitos, dada minha índole pacifista e o caráter excessivamente belicoso que vivemos. Mas a imagem de uma mulher que além de se defender, também ataca –  armada apenas de inteligência e presença de espírito – tem um poder inegável.

É este tipo de imagem que precisa viralizar para denunciar o assédio – e não o assédio em si, captado em vídeos idiotas de brasileiros que insistem em nos envergonhar.

Aretha Franklin já mandou essa letra – inclusive soletrou – mas ainda é preciso ouvir a Júlia dizer o que queremos: respeito.

Helê

Capitus e Bentinhos

A mulher enganou o diabo, diz o diabo e dizem, sobretudo, os enganados. Abandonados, traídos e esquecidos não faltam no cancioneiro popular, nem mulheres perversas. Ou aquelas que simplesmente não querem mais, e por isso viram bruxas. Mas há outro tipo que vez por outra surge em notas musicais e eu acho particularmente interessante: as dissimuladas, escorregadias, com dois centímetros a menos da honestidade esperada numa relação; as que aprontam e enlouquecem seus amados que, no entanto, permanecem com elas, entre lamentos e resignação.

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A primeira dessas com a qual esbarrei (e me encantei) foi “A Rosa” do Chico, aquela que ele já apresenta dizendo: “arrasa/o meu projeto de vida”. Assim, direto, no primeiro verso, como se fosse descrever a pior das megeras. Mas completa: “Querida, estrela do meu caminho”. E por aí ele segue, fazendo conosco o que ela faz com ele: dribles, jogo de corpo, dando uma no ferro e outra na ferradura. A Rosa some nas altas da madrugas mas, coitada, trabalha de plantonista. Tem incongruências, como visitar a família em São Paulo e voltar descascando; sair pra comprar cigarro e voltar com coisas do norte. Mas, bolas, inventa cada carícia e é tão fogosa, que o próprio cara desculpa seus deslizes: “A santa/às vezes me chama Alberto/De certo sonhou com alguma novela”. Ela é tão viva, e divertida e livre que ao fim da música estamos todos, como Chico, rendidos aos seus encantos – e esperando que ela um dia volte pra casa.

Outra mulher difícil, essa bem mais malvada, é a descrita por Aldir Blanc em “Incompatibilidade de gênios”. Acaba levando o homem a pedir a separação, e toda a canção trata-se dele explicando como chegou a este estágio – para alguém que eu suponho seja um juiz, já que é tratado como “Dotô”. Ao contrário da Rosa, dessa só sabemos só os podres , e por isso mesmo impressiona que ele tenha demorando tanto para se rebelar. Pra início de conversa, a mulher muda a estação do rádio no jogo do Flamengo – o que por si só justifica anulação de casamento. A malvada leva a mãe pra morar com eles e convida os cobradores a entrar – e ainda manda sentar! Acho um primor a maneira elegante como ele fala que ela se nega a transar: “Durante dez noites me faz jejuar”’.  Ela deve amar o cara, pois recorre a expedientes heterodoxos para mantê-lo (“Coou/meu café na calça pra me segurar”), mas  beira o sadismo: sequer lhe assopra um cisco no olho (“falou que por ela eu podia cegar”).  Mas o cidadão só decide dar um basta quando ela sonha com ele, manda jogar no bicho – no burro – e acerta a dezena, a centena e o milhar.

Toquinho também descreve um homem absolutamente entregue a uma mulher que não parece corresponder a devoção. Em “Doce vida”, ele praticamente pede: me engana que eu gosto.

“Diga que dessa vez foi tudo intriga/Conta a mentira mais antiga
A do cinema com uma amiga/Jura com as mãos fazendo figa
Mas fica aqui do meu lado”

Essa deve valer muito a pena porque apesar das escapadas mais óbvias e desculpas esfarrapadas (“cabeleireira, massagista e costureira”) , apesar dela espalhar que é solteira e chegar “depois das três da madrugada/com a pintura retocada/ligeiramente perfumada”, o cabra ainda espera, e perdoa. Afinal, “toda rosa tem espinhos” e ele acredita no que quer: “bem no fundo/o seu dono sou eu”.

Malandras, cínicas, safadas? Otários, cornos, manés? Perigoso classificar, como sempre; eu não me arrisco. Sei que quando ouço essas canções sempre me divirto com a situação e com esses personagens. As mulheres me intrigam – há de haver um encanto muito especial nelas, parecem mesmo fascinantes. Também os homens são dignos de admiração, capazes de uma generosa dose de abnegação para superar não apenas os vacilos, mas o julgamento alheio para viver um amor que, apesar de tudo, lhes apetece. Talvez personifiquem a versão masculina da expressão “mulher de malandro”: apanham (num sentido figurado) mas continuam juntos. E elas, faceiras, ardilosas, maduras, mantém seus amores sem que isso lhes cerceie a liberdade. No fundo, acho que é isso que  me agrada nessas canções: certa inversão de valores (machistas) e alguma desconfiança de que  talvez sejam apenas as versões masculinas (inseguras, fantasiosas) de Bentinhos miseravelmente apaixonados por essas Capitus pós-modernas, independentes, felizes, donas de seus narizes.

Helê

(Há anos tenho essa ideia de pleilist e nunca parei para fazê-la, de fato – talvez buscando a perfeição, essa desculpa disfarçada de virtude. O post estava todo rascunhado na cabeça e também no word, mas o último parágrafo só nasceu agora, pouco antes da publicação – consequetemente, o título. Nada não, é que me intrigam os misteriosos caminhos da criação).

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