Passei os dias mais tristes da pandemia neste último fim de semana, num banzo abissal. Uma ausência imperiosa, esmagadora, o silêncio ensurdecedor da rua. Suspirei pelos cantos como quem perdeu um amor. De vez em quando olhava pela janela pra ver se ele por acaso iria voltar. Temi que fosse exagero, mas um amigo, também feito no carnaval como eu, me disse que olhar para suas fantasias era como encontrar peças de roupa do ex esquecidas no armário. E suspiramos juntos, embora separados.
Não se trata propriamente de sentir falta da ilusão, porque pra mim o carnaval é de um realidade inconteste. Também não sinto falta do escapismo, como dizem alguns: eu escapo* o ano todo para que no carnaval eu possa estar e ser, plenamente.
Para atravessar esse feriado, esse deserto de folia, alegria e purpurina, recorri aos amigos, às lembranças e ao colo que Maria Bethânia deu ao Brasil em sua live transmitida no sábado de carnaval. Verdade, vacina, respeito e misericórdia exigiu a rainha, que nos vacinou com beleza e esperança, assegurando que a primavera virá, mesmo que esqueçamos seu nome. Dormi naquela noite aninhada na fé em Bethânia e em suas palavras.
Os outros intermináveis dias atravessei como foi possível. A minha alegria, que todo ano atravessava o mar e circulava sem âncora pela cidade, virou um refluxo, um travo. Não poder estar com os amigos celebrando o fato singelo e necessário de estar com eles me abateu demais. Ouvi repetidas vezes nesses dias: “Até eu, que não sou de carnaval, estou sentindo…”, o que só comprova a dimensão e potência do carnaval, que atinge mesmo aqueles que não se dão conta disso.
Meu coração ficou em desalinho, como disse Monarco; não fiquei feliz, como Bel Marques declarou. Mas fiquei satisfeita ao perceber que aqueles que amam o carnaval de verdade, que compreendem sua função e importância – mais na pele que intelectualmente -, esses comungaram dessa tristeza coletiva, sem tentativas de burlar a proibição. Porque quem ama o carnaval entende que não adianta uma festa pra mim ou para os meus: ou salvam-se todos ou não há carnaval possível.
Então vamos nos salvar, gente. Pela arte, pela fé, pela militância, pelo amor, como for possível. Salvemo-nos todos, bravamente; vamos nos manter vivos, a mais desafiadora e eficiente forma de resistência. Estaremos aqui quando o carnaval chegar – porque ele, assim como a primavera, também voltará.
Helê
*Ao falar sobre escapar a Rádio Cabeça começou a tocar “Feliz por um triz”, de Gil:
“Mal escapo à fome
Mal escapo aos tiros
Mal escapo aos homens
Mal escapo ao vírus
Passam raspando
Tirando até meu verniz”
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