Cinzas

Passei os dias mais tristes da pandemia neste último fim de semana, num banzo abissal. Uma ausência imperiosa, esmagadora, o silêncio ensurdecedor da rua. Suspirei pelos cantos como quem perdeu um amor. De vez em quando olhava pela janela pra ver se ele por acaso iria voltar. Temi que fosse exagero, mas um amigo, também feito no carnaval como eu, me disse que olhar para suas fantasias era como encontrar peças de roupa do ex esquecidas no armário. E suspiramos juntos, embora separados.

Não se trata propriamente de sentir falta da ilusão, porque pra mim o carnaval é de um realidade inconteste. Também não sinto falta do escapismo, como dizem alguns: eu escapo* o ano todo para que no carnaval eu possa estar e ser, plenamente.

Carnaval de Olinda, 2021. Foto de Ivanildo Machado.

Para atravessar esse feriado, esse deserto de folia, alegria e purpurina, recorri aos amigos, às lembranças e ao colo que Maria Bethânia deu ao Brasil em sua live transmitida no sábado de carnaval. Verdade, vacina, respeito e misericórdia exigiu a rainha, que nos vacinou com beleza e esperança, assegurando que a primavera virá, mesmo que esqueçamos seu nome. Dormi naquela noite aninhada na fé em Bethânia e em suas palavras.

12 de Fevereiro de 2021
O dia em que os nossos tambores não rufaram. Estamos em silêncio, não apenas por causa do carnaval, mas também por todos que perderam as suas vidas para o Covid-19! @OlodumOficial

Os outros intermináveis dias atravessei como foi possível. A minha alegria, que todo ano atravessava o mar e circulava sem âncora pela cidade, virou um refluxo, um travo. Não poder estar com os amigos celebrando o fato singelo e necessário de estar com eles me abateu demais. Ouvi repetidas vezes nesses dias: “Até eu, que não sou de carnaval, estou sentindo…”, o que só comprova a dimensão e potência do carnaval, que atinge mesmo aqueles que não se dão conta disso.

Meu coração ficou em desalinho, como disse Monarco; não fiquei feliz, como Bel Marques declarou. Mas fiquei satisfeita ao perceber que aqueles que amam o carnaval de verdade, que compreendem sua função e importância – mais na pele que intelectualmente -, esses comungaram dessa tristeza coletiva, sem tentativas de burlar a proibição. Porque quem ama o carnaval entende que não adianta uma festa pra mim ou para os meus: ou salvam-se todos ou não há carnaval possível.

Monarco vacinado na Praça da Apoteose no sábado de carnaval

Então vamos nos salvar, gente. Pela arte, pela fé, pela militância, pelo amor, como for possível. Salvemo-nos todos, bravamente; vamos nos manter vivos, a mais desafiadora e eficiente forma de resistência. Estaremos aqui quando o carnaval chegar – porque ele, assim como a primavera, também voltará.

Helê

*Ao falar sobre escapar a Rádio Cabeça começou a tocar “Feliz por um triz”, de Gil:
“Mal escapo à fome
Mal escapo aos tiros
Mal escapo aos homens
Mal escapo ao vírus
Passam raspando
Tirando até meu verniz”

 

 

Notas sobre um carnaval teórico

Você sabem que eu não sou a pessoa mais animada do bloco quando chega o carnaval.

Mas sou uma carnavalesca teórica. Acho essa festa a coisa mais potente que nosso povo já criou. Adoro a ideia de carnaval, embora não a ponto de ir. (Quer dizer, às vezes eu até vou.)

Um registro meio tremido de uma vez que fui…
… e vários outros direto do baú da Helê, minha guardiã da folia.

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Nos últimos anos tenho me sentido cada vez mais exilada no meu próprio país. Não sei se o povo brasileiro se transformou em alguma coisa horrível com a qual não me identifico, ou se ele sempre foi isso aí mesmo e a elite intelectual à qual pertencemos criou uma fantasia sofisticada de Brasil na qual acreditamos. Só sei que tem sido difícil me sentir parte dessa nacionalidade. Mas o carnaval sempre me lembrava que sou sim brasileira, que tem algo no Brasil-que-toca-bateria que também reverbera aqui dentro.

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Eu adoro os blocos, mas tenho um carinho especial pelo desfile da Sapucaí. Acho aquilo um espetáculo extraordinário, sem igual no mundo.

Ver o vídeo da Alcione cantando sozinha na avenida me derrubou. Mesmo sabendo que é propaganda pra vender mais cerveja, não importa. Chorei demais quando me dei conta do tamanho dessa ausência, desse silêncio forçado que na verdade já começou mas que vai ser mais palpável a partir de hoje.

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Sei que a Helê está sofrendo, nossa Frida carnavalesca de coração, corpo e alma. Ela e outras amigas queridas que vivem o carnaval intensamente. Fico pensando que se eu estou nesse estado de espírito, elas não devem nem conseguir colocar em palavras o que significa um ano sem folia. Talvez isso explique porque é que a Frida menos animada foi quem conseguiu escrever sobre isso.

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Hoje eu assisti uma live da prefeitura do Rio sobre os números da Covid na cidade. Em determinado momento o prefeito pediu para dar um recado (ele queria dizer que estão fiscalizando bailes e festas não autorizadas e que não pode ter aglomeração de nenhum tipo). A gente sabe que Dudu é do balacobaco, que ama carnaval, provavelmente tanto quanto minhas amigas foliãs. Ele começou dizendo mais ou menos o seguinte: “é um ano difícil pra quem gosta de carnaval. Imaginem para mim, que passei quatro anos esperando para dar a chave da cidade ao Rei Momo… O sujeito que veio antes de mim fez tudo pra acabar com o carnaval, e logo no meu primeiro ano, tive que cancelar a festa.”

Se tá ruim pro Dudu, se tá ruim pra Helê, tá ruim pra todos nós. Dá vontade de sair por aí implorando a todo mundo: pelo amor de Dadá, faça esse sacrifício valer a pena, fica em casa e se cuida. Bora curtir esse (espero que) único carnaval teórico de verdade, para que no ano que vem a gente possa se acabar de alegria. Quem sabe até eu me junto à empolgação? Vai ser histórico.

-Monix-

Yemanjá é a rainha do mar

Depois de evocar Netuno na semana passada e usar nossa ligação com o mar como mote para a nossa newsletter (ainda não recebe?! Clique aqui!), vamos saudar a Senhora dos Mares, nossa sempre mãe Iemanjá! Salve Iemanjá!

Daniel Minter

Helê