Chico sempre

Para Geide e Tina

Uma mudança na minha rotina tirou a possibilidade de caminhar/andar de bicicleta cedo, e lá se foi uma mais uma vez o hábito recém readquirido do exercício físico. Além da preguiça nossa de cada dia, sou uma pessoa matinal, malhar em qualquer outro horário é uma dificuldade a mais pra mim. Mas o corpo reclamou e lá fui eu sexta-feira, repetindo pra mim “é só meia hora”, que sempre serve pra ir além disso.

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Cinco minutos depois e eu já tinha lembrado como o exercício oxigena o cérebro, e como é bom cantarolar pelas ruas  (até alto, nas menos cheias).

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Caminhei ouvindo uma playlist feita a partir do último show do Chico. Depois de algumas músicas acabo repetindo mentalmente como um mantra: “Como o Chico é genial! Como o Chico é genial! Como o Chico é genial!”. Na sexta foi depois de “Paratodos”, que é uma árvore genealógica afetivo-musical brasileira, homenagem, receita e testamento.

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Ouvindo “Biscate” achei que pode servir de trilha sonora para a tetra tuiteira da semana, sobre namorar ou não alguém desempregado:  “Vivo de biscate e queres que eu  te sustente…andas de pareô eu sigo inadimplente“.

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Fala-se muito sobre as mulheres de Chico, mas há que se reparar também nos casais de Chico. Amo esses dois de Biscate, queria ser um deles. Disfarçam o amor com reclamações e críticas mais ou menos veladas, mas no fim das contas querem mesmo é se mandar daqui, ir pra Bahia, ver o sol se por e sair na bateria. Parecem ‘sob medida’ um para o outro – citando outra pérola buarquiana.

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Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

(Choro Bandido)

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Meu coração, que você sem pensar
Ora brinca de inflar, ora esmaga
Igual que nem fole de acordeão
Tipo assim num baião do Gonzaga

(Tipo um baião)

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Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial. Chico é genial.

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Acho “Caravanas” tão foda, forte, tão Rio de Janeiro que eu coloco junto a outras grandes canções políticas do Chico. Não é música de protesto dos anos 60, mas tem a mesma contundência e poder de denúncia. Uma crônica, ou talvez um videoclipe: eu vejo os caras chegando de ônibus na zona sul, a algazarra, o temor, a alegria, a tensão e o tesão latente e reprimido. E amo o deboche final: “Sol, a culpa deve ser do sol“.

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A última música da caminhada foi a que deu nome ao show, “Que tal um samba?” Muitos anos se passarão e eu ainda vou me lembrar de mostrar “Que tal um samba?” dentro do carro, em São Paulo, para duas das amigas mais queridas. Foi no dia seguinte ao lançamento da música, entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2022, e tudo que a gente desejou foi que aquilo fosse um prenúncio de que, depois de uma dor filha da puta, a gente poderia “Juntar os cacos, ir à luta/Manter o rumo e a cadência/Desconjurar a ignorância/Desmantelar a força bruta”. Obrigada, Chico, por esse “vai passar” profético e delicado, que naquele momento nos envolveu como um abraço e fortaleceu nossa resistência.

Helê 

 

 

Colaterais

Ando flertando com a possibilidade de voltar a estudar. Então antes de entrar num relacionamento sério com a Academia, aproveito a desobrigação de citar fontes e reunir quem concorde comigo para jogar ideias ao vento, displicentemente. (Também)Pra isso serve um blogue.

Estive pensando que no quanto a sociedade brasileira deve ao contingente afrodescedente da população – e eu nem estou falando das riquezas acumuladas a custa de nossos ancestrais (ouça o Projeto Querino, indique pra alguém, ouça de novo). Constatei que toda vez que os pretos avançam socialmente, levam consigo outros; nunca somos só nós – e só nós já seria mais da metade da população.

Estava pensando em lutas e conquistas relativamente recentes, como por exemplo, os quilombolas. Pelo que ouvi dizer (olha aí a vantagem de não ter responsabilidade acadêmica), o artigo da Constituição que garante às comunidades remanescentes de quilombo a posse de suas terras foi aprovado porque não havia compreensão do que isso significava realmente; acreditava-se que iria beneficiar meia dúzia de povoados, se tanto. Mas, nas décadas seguintes à promulgação do Artigo 68, vimos centenas de comunidades iniciarem a luta pela terra (já que a titulação definitiva envolve processos longos e complexos). Esse contingentes de diferentes tamanhos, formatos e modos de subsistências não surgiram com a lei, mas a partir dela passaram a poder exigir que o Estado as reconhecesse como detentores de direitos específicos. Na esteira dessa luta, deram legitimidade ao conceito de “comunidade tradicional”. Ao argumento “Ah, mas tem outras comunidades que não são quilombolas e também ocupam a terra a muito tempo!”, passamos a reconhecer também esses agrupamentos – pescadores, comunidades ribeirinhas e outros modos de viver comunitário. Essa é a impressão que tenho, que a partir da luta dos quilombolas outras comunidades tradicionais não-indígenas passaram a ser enxergadas como agrupamentos sociais relevantes com direitos próprios.

Coisa semelhante aconteceu com as cotas raciais. Falando de um ponto de vista absolutamente leigo, apenas como alguém que observa pela filha as mudanças na universidade hoje, alguém atenta ao cotidiano e às notícias: acho que nada provocou impacto maior na universidade e na sociedade brasileira nos últimos 20 anos que as cotas raciais. Uma discussão sempre em curso, uma medida a todo momento ameaçada mas cujos reflexos já são perceptíveis em várias áreas – e tendem a ser cada vez mais. E qual foi o primeiro ataque à ideia de cotas? “Ah, mas a questão não é apenas racial, tem os estudantes brancos da escola pública, os estudantes pobres…” A solução, na imensa maioria dos casos, não foi ignorar a raça, mas reconhecer e acolher também esses outros grupos vulneráveis – que, é preciso frisar, nunca haviam sido efetivamente considerados antes das discussões sobre cotas raciais. Além do ganho esperado, de um maior contingente de negros no ensino superior, as cotas provocaram efeitos colaterais positivos ainda a serem mensurados, mas que evidentemente ultrapassam a população negra.

Ou seja: a gente nunca avança sozinho.

De nada.

Carlos Vergara/Divulgação

Hele