Retrato do Brasil

Cerimônia de posse de Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal Federal

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Dado que o Executivo é comandado por uma mulher, o Judiciário por um negro e o Legislativo… pelo Sarney (que é uma “categoria” à parte), podemos deduzir qual dos poderes ficou para trás no bonde da história. :-(

-Monix-

Quero ser pai

Quero saber, nem que seja por um dia, como é viver sem sentir culpa por todos os problemas da criança, e talvez por alguns da humanidade também. Quero não me descabelar nem ter que dar ordens em tom de voz crescente, apenas para ser ignorada – quero resolver tudo com uma simples frase, tipo “come direito”, “vai estudar”, “já pro banho”. E mesmo que não seja obedecida, quero voltar a ler meu livro ou assistir TV sem me abalar ou me remoer eternamente com perguntas inúteis como “onde foi que eu errei?”.

Quero esquecer que hoje tinha reunião da escola. E se me lembrar, quero conseguir deixar pra lá e ir tomar um chope. Quero programar uma viagem sem nem cogitar sobre quem vai ficar com a criança. Quero tirar o menino da cama para ir à escola com uma sacudida e um “tá na hora”.

Quero apenas perguntar “quanto custa?” para qualquer coisa, sem ficar me questionando durante horas, dias, semanas, se esta é a melhor opção ou se não seria melhor fazer de outra forma.

Pelo menos por um dia, eu quero. Mas, se possível, para sempre.

 Eu me esforço, mas é difícil, viu? Não cair na armadilha dos papéis de gênero.

Sorria!

(via goodmemory)

E tenha uma boa semana!

Helê

Radicalizando

(Chicago SLUTWALK 2012. Do aboutmaleprivilege via queennubian)

Não,  ela não está pedindo  – nem para ser agredida, violada, nem sequer tocada.

Quando isto for óbvio para todos, aí então teremos evoluído.

Helê

Slut shaming

Estava indo para o trabalho e ouvindo a BandNews FM quando começou o comentário do Milton Neves, que escuto mais por hábito que por gosto. Hoje o tema inicial da fala dele foi o caso Elisa Samudio, e antes de qualquer coisa, disse ele, era preciso prestar um esclarecimento muito importante. “O pessoal fica aí falando que ela era modelo, mas ela era mesmo garota de programa, Boechat.”

Ao que o âncora retrucou imediata e precisamente: fosse ela modelo, garota de programa, enfermeira ou freira, não se justifica que seja assassinada brutalmente como tudo indica que foi.

É uma ressalva que pode parecer meio óbvia para você leitora/leitor que é meio-intelectual-meio-de-esquerda – mas não é. A essa altura dos anos 2000, ainda é bem mais comum do que a gente pensa essa mentalidade de que “ela pediu”, “ela mereceu”, “ela provocou”. Não acho que o comentário do Milton Neves tenha sido intencionalmente machista, mas esse discurso muito me preocupa, pois justamente por não ser explícito acaba contribuindo para a propagação de uma cultura que justifica e corrobora a violência contra a mulher.

Nem sempre o Boechat acerta, mas acredito sinceramente que desta vez ele prestou um grande serviço aos seus ouvintes. Às vezes uma pulga atrás da orelha é o primeiro passo para fazer as pessoas pensarem melhor sobre assuntos incômodos.

-Monix-

Lar

(via Music keeps me going)

Helê

Amigas de fé

Dizem que mulheres não são boas amigas.

Outro dia minha amiga* Carol lembrou deste assunto, lá no Facebook (nossa praça pública virtual, onde tudo acontece nesses dias que correm). O bordão é antigo, clichê que se reforça a cada piadinha, charge, reportagem (?) de revista feminina, propaganda: homens são amigos de verdade; mulheres só conseguem competir entre si. Para ilustrar o estereótipo, recorro a uma anedota que é quase uma parábola:

Dois casais de amigos se encontram casualmente. Os homens se dirigem um ao outro com as costumeiras ofensas que não passam de elogios disfarçados:

“E aí, viado? Tá mais gordo, hein?”

“E você, quando vai ser a inauguração do aeroporto de mosquito?”

Ao passo que as mulheres se cumprimentam com elogios protocolares:

“Querida, quanto tempo… para você, parece que o tempo não passa!”

“Você também está ótima! Cada vez mais elegante!”

Quando se afastam, o marido comenta: “Fulano é gente boa demais, me amarro nesse cara.” E a mulher responde: “você reparou com a Fulana engordou? Que horror, será que é problema de tiroide?”

 

Assim são os relacionamentos entre homens+homens e mulheres+mulheres, segundo o senso comum. Não me arrisco a formular uma hipótese (necessidade de controle patriarcal? distúrbios de auto-estima de toda uma população feminina? inveja do pênis ao contrário?), prefiro simplesmente discordar.

Ao longo da minha vida conquistei alguns amigos de fé, mesmo, tipo irmãos camaradas. Muitos deles são homens; a maioria, mulheres. Quando olho pelo retrovisor e lembro dos momentos difíceis da minha vida, minhas amigas estão sempre lá, segurando minha mão e ajudando a fazer a travessia. Nos momentos de sucesso e grandes conquistas, também – nada da inveja, competição, despeito. Apenas a alegria verdadeira compartilhada comigo. Gosto de pensar que também tenho sido uma amiga assim, que está presente quando é necessário dar apoio e também quando só o que se quer é alguém para aplaudir e curtir uma boa notícia.

Não acho que eu tenha tido mais sorte que ninguém. Pode ser que para algumas mulheres seja mais difícil encontrar amigas em quem confiar. Mas me parece que a história da vida privada é feita de solidariedade feminina – sem a qual custo a acreditar que seria possível sobreviver em épocas mais difíceis para o “sexo frágil” de então.

Meninas que se casavam cedíssimo e não tinham ideia de como cuidar da própria saúde após o início da vida sexual. Essas mesmas meninas que eram mães em idades em que hoje ainda se brinca de boneca (metaforicamente ou não). Mulheres que precisavam conhecer ervas que curassem, óleos que embelezassem, comidas que alimentassem. Mulheres que teciam e costuravam, as próprias roupas e as de toda a família. Todos esses conhecimentos – e muitos outros – eram transmitidos por essa rede de solidariedade, que existe até hoje, mas que tomou outras formas, talvez menos visíveis.

Não aceito mais esse clichê. Não posso – não seria justo com minhas inúmeras e maravilhosas amigas.

 

-Monix-

 

*E assim já começo o post desmontando a tese: minha amiga Carol é uma boa amiga. :-)

 

 

 

Obama e eu

A primeira eleição de Obama coincidiu com eventos terríveis na minha vida, e por isso a alegria pela sua vitória empalideceu quase completamente.  A boa nova luzia  distante enquanto eu vivia uma crise sem precedentes  – mais ou menos como  a economia americana naquele final de 2008. Passados quatro anos, Barack  fez um governo apenas regular, mas suficiente para manter-se no comando e  evitar a derrocada que parecia inevitável  –  mais ou menos como eu, guardadas as proporções, of claro. Isto posto, você pode compreender porque eu me emocionei tanto com o discurso da vitória. Neste trecho, em especial, eu tive a irrracional certeza de que ele falava para mim: “while our road has been hard, while our journey has been long, we have picked ourselves up, we have fought our way back, and we know in our hearts that …the best is yet to come.” Yeah, man!

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Pensando bem, acho ótimo que o primeiro mandato  de Obama tenha sido apenas mediano, presta uma enorme contribuição à igualdade racial. Porque veja bem: prova que também nós negros podemos fazer um governo apenas razoável — como qualquer branco. Ao contrário da regra que dita  que precisamos ser extraordinários, os melhores em nossas turmas, seções e departamentos para conseguir o que brancos com menor capacidade obtém sem esforço. Dito assim soa agressivo, eu sei. Mas é assim que acontece. É bom não precisar inventar o dente, como diria o inspirado Chris Rock.

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No discurso houve também a belíssima declaração à Michelle. Quem não gostaria de receber um afago como esse, num momento como aquele? Sim, ele é um político, blábláblá. Mas se todo político enaltece a família, Obama faz  soar verdadeiro, genuíno. Visto daqui parece que o marquetingue e a oratória trabalham com matéria prima legítima.  E há um detalhe realmente inovador: Obama promove a imagem do casal, além da família. E demostra pela mulher não apenas afeição, mas algo raríssimo de ver um homem expressar: orgulho e admiração.

“Let me say this publicly. Michelle, I have never loved you more”. 

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Li aqui e ali alguns comentários desdenhosos do tipo “vocês aí que estão entusiasmados com a vitória do Obama”, como se fôssemos todos neófitos deslumbrados. Só posso falar por mim: já não tenho idade para ser nem uma coisa nem outra. Evidentemente que Obama não representa nenhuma força revolucionária ou coisa que o valha, au contraire. Mas há um ganho de valor incalculável com o novo paradigma estético, imagético, social que sua vitória inaugura e a reeleição amplia. Eu me permito sim ficar feliz com a vitória dele, que mais não seja pela oportunidade de ver uma família negra com tamanho destaque e positividade. Nunca antes na história do mundo globalizado assistimos a isso, e há repercussões que ainda levaremos anos detectando, muito depois que esse mandato acabar. Mãe que sou de um criança que está assistindo a esses momentos históricos, acho que trata-se de uma oportunidade ímpar. Na boa: a longo prazo não faz a menor diferença para nós quem governa os EUA (a médio e curto também). Mas, como disse a filha de uma amiga, do alto de seus 12 anos, satisfeita com o resultado: “eu gosto dele e também porque ele é um presidente negro e isso é muito importante para muita gente.” Eu diria que para todos nós.

Helê

Vida autônoma

“A classe média europeia não está acostumada com a moleza. Toda pessoa normal que se preze esfria a barriga no tanque e a esquenta no fogão, caminha até a padaria para comprar o seu próprio pão e enche o tanque de gasolina com as próprias mãos. É o preço que se paga por conviver com algo totalmente desconhecido no nosso país: a ausência do absurdo abismo social e, portanto, da mão de obra barata e disponível para qualquer necessidade do dia a dia.

Adriana Setti

Minha amiga Cibele mostrou esse texto no Facebook, que eu já conhecia e com o qual concordo – com ressalvas. Aqui no Brasil a estrutura das cidades já considera que teremos “serviçais” (não encontrei termo melhor, e opto por manter este inclusive para não disfarçar o choque que a palavra traz) para realizar certas tarefas – como encher o tanque do carro ou empacotar as compras do supermercado. São tarefas que não compõem o serviço em si, mas que todos nós estamos acostumados a ter alguém que as execute sem que tenhamos trabalho ou sequer percebamos que estamos sendo poupados de fazê-las.

Contando com isso, nós não criamos expertise para desenvolver postos de serviços que possam ser operados por qualquer pessoa.

O aeroporto de Madrid, de onde acabo de chegar, deve ter o tamanho de um pequeno município brasileiro – nunca vi uma estrutura urbana tão gigantesca. Pois lá os voos não são anunciados. O único aviso sonoro é para avisar aos viajantes que os horários e
portões são informados em paineis e que é responsabilidade do passageiro apresentar-se no local e hora corretos para
embarque. Este sistema pressupõe uma maior responsabilidade individual (ninguém conta com a babá do alto-falante chamando os atrasadinhos pelo nome), mas também pressupõe uma organização impecável, que não temos por aqui.

Quantas vezes, ao embarcar em Congonhas ou no Santos Dumont, meu voo mudou, digamos, do portão 2 para o 14, faltando 20 minutos para o horário previsto, sendo que um era no andar de cima e o outro no debaixo, tendo que pegar ônibus e tudo mais? Se essa confusão acontece em Barajas o aeroporto pára.

Poucas estações de metrô contam com guichês para venda de bilhetes. O passageiro compra em máquinas que aceitam moedas, cédulas, cartões de débito, crédito, fazem cafuné e dão troco. As estações são super bem sinalizadas, sabe-se facilmente que linha pegar, onde será feita a conexão, em quantos minutos o trem irá chegar.

Com a ascensão da nova classe média, a tendência é que cada vez menos pessoas estejam dispostas a lavar carros e carregar sacolas por trocados. Muito rapidamente, teremos que tomar esse mesmo caminho: baixar o padrão ao qual estamos acostumados e desestimular a infantilização de certos setores da nossa elite, que continuam precisando de babás disfarçadas ao longo de toda sua vida adulta. A tarefa é tanto individual quanto estrutural, porque tentar construir uma vida autônoma nas cidades brasileiras, sem depender de mão de obra pouco qualificada para prestar serviços desnecessários, não é tão fácil assim. (Ainda.)

-Monix-