Eu já reclamei no twitter (onde mais, né?) desse calendário doido em que o carnaval vem depois da Páscoa – e nem católica eu sou, veja você!… Botei a culpa do meu desconforto no ascendente em virgem, mas esse moço definiu melhor:
Tentando abotoar essa camisa existencial e retomar os preceitos fundamentais da vida, lá fui eu no dia 23 para a Igreja de São Jorge, vestida de melindrosa. Porque também era sábado de carnaval, a roupa é vermelha, achei que o Santo entenderia. Em sinal de respeito, tirei a pena da cabeça, na hora da reza.
Foi um reencontro comovido, como têm sido todos na Retomada. Eu, que já choro nessas ocasiões porque a fé me emociona demais, chorei dobrado esses dois anos de ausência, perdas e lutas, em que, apesar de tudo, as roupas e as armas de Jorge protegeram não só a mim, mas também os meus. Salve, Jorge! Sempre! Ogunhê!
Como faço todos os anos, saí da igreja com planos vagos, disposta a andar um pouco pelas redondezas, observando o movimento dos fiéis, disponível para o que a rua oferecesse. Sempre, desde que instaurei pra mim essa tradição de ir à Igreja no dia de Jorge, coisas surprendentes e felizes acontecem: já encontrei rodas de samba memoráveis, já comi feijoada de graça, encontrei amigos, vi apresentações de choro, celebração de umbanda no Campo de Santana, já fui parar na quadra da Estácio de Sá… Desta vez achei que nada aconteceria já que o movimento foi muito menor, mas ao longe ouvi um batuque, fui me aproximando e era um maracatu que veio ao meu encontro. Vinha lindo e potente o Baque Mulher, com sua magnética rainha à frente, e eu fui acompanhando o cortejo, lembrando imediatamente dos passos, como se não fizesse dois anos que eu não dançava. E para que o recado não passasse despercebido, minha mestra no Tambores de Olokun me encontrou no meio do povo, e num abraço esfuziante me convocou: “Volta!”.
Surpreendentes e felizes, eu disse.


Depois disso, fui até a Praça da Harmonia, onde novamente encontrei São Jorge e uma mistura indelével de fiéis e foliões. No caminho, fui abordada por um “frei” (“ô, melindrosa, sabe que horas sai o bloco?”), fiz duas amigas (“Oi, eu sou a Vanessa, ela é a Michele, tá indo pra praça também?”) e ouvi alguém reclamando sozinho pela rua: “É São Jorge, é carnaval, é jogo do Flamengo, assim não dá! Vai ter que ter um auxílio emergencial de mil reais! E quando o Lula for eleito, vai ter outro carnaval!”. Ou seja, puro suco de Rio de Janeiro, só um pouco mais bagunçado que o habitual.
Fora essa rápida saída sacro-profana, o carnaval de abril não me capturou, e nem sei explicar bem o porquê. Só não bateu, simples assim. Acabei curtindo pela tevê, e mesmo assim, só algumas escolas. A Mangueira, belíssima, me fez chorar em camadas com a comissão de frente: o surgimento dos três homenageados, as rosas brotando, a homenagem a Seu Nelson Sargento. É realmente uma lástima que não tenhamos nova oportunidade de vê-la, assim como o magnífico carro em que Seu Delegado bailava etéreo sobre uma caixa de música, bailarino exímio que foi (tive a honra de vê-lo de perto e cumprimentar, juntamente com D. Mocinha, em uma apresentação na Uerj, garbo e elegância inesquecíveis). Não consegui uma boa foto desse carro, o que me fez pensar que o desfile tem uma volatilidade desconcertante. Todos os anos vemos alas refinadas, fantasias primorosas, carros estonteantes por alguns minutos – e isso dentre aquilo que a transmissão monopolizada, precária e parcial decide mostrar, que ainda é apenas uma parte o espetáculo real. A gente não pode normalizar algo tão improvável e espetacular, e deveríamos manter um registro cuidadoso dessa expressão ímpar e magnífica que é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Que mesmo acontecendo meio fora de lugar no calendário, foi fundamental para restabelecer laços, crenças e esperanças. Além de marcar o tempo: é preciso o carnaval, ou pelo menos o desfile, sua raiz profunda, para que a gente acerte os botões da camisa – ou desista dela de uma vez e vista um collant de lamê.
Quem sabe agora, com Exu devidamente reconhecido e celebrado – ele que deve ser o primeiro a ser servido – não possamos nós, de fato, recomeçar? Laroyê! E que a gente cumpra a obrigação ancestral de ser feliz.
Helê
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