Hoje visitei Dona Doida – como eu chamo carinhosamente a velha que cuida da minha memória. Fiquei remexendo o conteúdo de caixas do meu sótão sentimental, sem um objetivo claro, e esbarrei no texto que transcrevo abaixo. O autor, Jacinto, foi meu colega de trabalho anos atrás – na Idade Média – e dele guardo a lembrança de alguém carinhoso, talentoso, tímido e bem humorado – além de um delicado poeta. Um dia, num papo casual, falei da minha admiração pelos gatos, e ele me respondeu alguns dias depois com esse belo texto. Jamais me esqueci dele, mas não lembrava que havia sido dedicado a mim – Dona Doida faz escolhas estranhas. Por isso é bom de vez em quando ir ao sótão e checar pessoalmente nossas relíquias – seja para se desfazer das que o tempo tornou inútil, seja para lustrar as que a ele resistem e se mantém valiosas.
A respeito de gatos e tartarugas*
(À Helena Costa)
Eu que deveria gostar dos gatos, animar-me com a real possibilidade de legitimar a solidão altiva e elegante, acabei por preferir as tartarugas — tão a longo e aprendizado prazo. Também elas são prazerosamente solitárias, eu sei, e é essa a realidade lenta do tempo que me conquista: os gatos são espertos e rápidos demais.
Logo eu, tão agoniado e pronto pra tudo, deveria ser apaixonado por eles: identificar-me. Mas não. Dei pra tentar entender o segredo contido nas tartarugas, e a passar tardes vigiado docemente pela lua, reparando-as e procurando conter-me, já no ventre do mundo, com certo alívio e tranquilidade. Os gatos me olham e me cobram o imediatismo que também eu me exijo, e por isso mesmo me atrapalham. Basta que eu crucifique minha própria ansiedade. Sete vidas e sete fôlegos e sete elegâncias me parece mágico, mas pouco sustentável em mim. Os gatos levam, ocultado, algum segredo-chave do Humano e vivem como se desejando serem admirados. E impune e sabiamente são.
Também deve ser levado em conta o temor de minha vaidade de não conseguir aparentar a dos gatos: há de se ser elegante de corpo e de espírito, como o equilibrista que se descobre altivo diante da platéia e espera o aplauso – ainda que apenas no camarim, a sós, saboreará o prazer solitário da descoberta de sua altivez.
Já as tartarugas são de um tipo de solidão mais caseira, mais solta e, me parece, mais feliz. Donas de uma elegância difícil de ser acompanhada por olhos, concordo, mas tão facilmente aceita por mãos. Sempre me enchem os olhos e as mãos de companhia – posso tocá-las sem medo ou suspeita de não estar com a postura correta. As tartarugas são feitas de passos, e o segredo de sua devoção para com o mundo é a lição da casa: moram em si mesmas; habitam-se entre paredes e mistérios. Reclusão voluntária ao casco: questão de necessidade. E se deixam. E se amam. E se renovam sem mudanças visíveis. E envelhecem renovadas. Têm o tempo como aliado e suas ausências, enterradas na terra, garantem seu enorme poder de refazer as horas, de reciclar os lerdos movimentos rumo à aurora, que vêem e esquecem, que vêem e adormecem. As tartarugas, já no nome, pedem cumplicidade e voz baixa. Há de se gritar para atingir Deus? Elas, por opção, sussurram voz e gesto.
Mais sobre os gatos, o que sei peco. Pouco entendo quando os vejo de pelos eriçados e bigodes esticados prontos a se defenderem. Quem sabe, também na defesa, eles não exijam a postura intacta e inatingível? Possivelmente. É um bicho nobre, o gato. Ainda que eu lhes cobre uma popularidade de movimento, tenho que admitir que diariamente são eles que reinam entre esquinas, telhados e almofadas. Silêncio e soberania. Não cedem carinhos: negociam — mesmo que o que desejem seja troca pura e simples de carinhos. É um bicho forte, o gato. Não se intimidam com cemitérios ou padarias pouco refinadas: garantem-se na própria elegância de olhar estrelas, com o corpo absolutamente ereto, e de encontrá-las. No fundo, a independência dos gatos me assusta. Possuem o meu respeito.
Mas existe o ponto em comum entre os gatos e as tartarugas: ambos administram a fragilidade Humana como ninguém, ao fingirem precisar do alimento do home, do carinho do homem, da proteção do homem, da ignorância do homem, da generosidade do homem, da carência do homem, do perdão do homem. Quando, na verdade, foram criados tão somente para explicar – cada um a seu estilo – a existência inexplicável do tempo.
*Jacinto Fabio Corrêa, 25 de junho de 1992
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