Deixa eu escrever sobre a viagem para o Chile porque o cotidiano já começa a querer me sugar para sua mesmice acachapante, as notícias bombásticas sucedendo-se tão vertiginosamente que acabam virando um nada pastoso e ruim, apenas. Já vem a política, a Crise e a vida pública me sufocando; se não cuido acabo acreditando que tudo isso é mais importante que a minha vida – e não é. Então vim escrever para reter. E para contar, porque a leitora perguntou “Vai ter post do Chile, né?” Tá tendo, Renata, obrigada por me pautar, poucas coisas me alegram tanto aqui no blogue. ; -)
Nunca subestime o poder de uma viagem, mesmo que ela seja rápida. Santiago do Chile foi uma oportunidade de três dias, o suficiente para querer voltar. Um presente, dos melhores. Já garantiu lugar na lista das melhores coisas deste ano…bizarro (pra dizer o mínimo), e está bem cotada na categoria Viagens Inesquecíveis. Afinal, teve vários marcos: minha primeira visita a um país latino-americano, a estreia da Fifi (diminutivo de minha filha) no exterior, nossa primeira viagem juntas e sozinhas. Aliás, que tenso passar na puliça federal, provar que você não tá roubando a quiança. Tenso na minha cabeça também, a responsabilidade dobrada de cuidar de si e do outro. Nada que a gente não supere nos primeiros deslumbramentos. 
Da janela lateral do quarto de dormir
Trocar dinheiro – um que parece de brinquedo e tem muitos zeros, me confundindo como nunca antes –, compreender e ser compreendida, encontrar lugares, checar o mesmo mapa 30 vezes, desvendar o metrô, detectar roubadas, identificar oportunidades, calcular distâncias mesmo sem saber exatamente onde está, contar com a sorte, acreditar que vai dar tudo certo; descobrir-se capaz. Coisas que fazem o ato de viajar especial e único, e que ganham tons mais intensos quando você está acompanhado da pessoa mais importante da sua vida. Outra viagem, paralela, observar na hija a alegria da descoberta, o entusiasmo com o novo; ser guia e também companheira, porto e carona: tem isso de cuidar, mas também teve muito dividir e compartilhar, bem mais do que eu esperava. Uma aventura das mais radicais isso de viajar com filhote, criar memórias – como disse o baiano que cruzou nosso caminho por acaso, Edmilson, e nos deu ótimas dicas.
Uma das melhores foi a troca de guarda no Palácio La Moneda, que a gente perderia se ele não nos dissesse que estávamos ao lado, e quase na hora de começar. Não sei ao certo o que achar do ritual, que para minha incredulidade acontece dia sim dia não (!). Uma versão pocket de um desfile de sete de setembro, com militares uniformizados, banda, cavalos; dura quase uma hora e para por alguns minutos parte do trânsito no centro de uma grande cidade. É entretenimento, mas não só: há reverência às forças armadas, o que me incomodou bastante. Mas também há graça na bandinha tocando o tema do Rocky Balboa e Aquarela do Brasil; vale a pena assistir, ainda que eu não tenha certeza sobre o que aquilo tudo representa.


O La Moneda foi nossa referência e quintal, nossa estação de metrô, ficamos mesmo íntimas (praticamente nossa Praça Afonso Pena – referência carioca-tijucana, sorry). Foi o primeiro ponto turístico que reconheci, mesmo chegando à cidade no meio da madrugada. Também era sobre o qual tinha ouvido falar mais, por causa do golpe militar de 73 e do assassinato covarde do Allende. Impressionante que aquilo tudo tenha se dado ali, no meio da cidade, à luz do dia. Em todas as muitas vezes que passei pelo Palácio não deixei de pensar nisso, e fico me perguntando se os santiaguinos conseguem (pelo menos os da minha idade ou mais velhos). O entorno é cercado por outros prédios importantes, como nos contou um simpático motorista de táxi, e por bandeiras do Chile – a gente contou 14, das grandes, em mastros, fora o Uhéobandeirão, tão enorme que não sei dizer o quanto e que dispensaria qualquer outra bandeira na cidade. Mas elas podem ser vistas por toda parte, pudemos encontrá-las nas varandas e janelas dos prédios próximos de onde nos hospedamos.
Quando estou numa cidade nova para mim fico atenta ao redor, à rua, às pessoas, fazendo comparações, traçando paralelos, anotando mentalmente detalhes que me chamam atenção. Muitos cachorros nas ruas, grandes, peludos e preguiçosos. O hábito de aproveitar parques ou qualquer pedacinho de grama como vi em Paris – também eu e Fifi rolamos na grama do La Moneda sem a cerimônia que o prédio impõe, como outras famílias perto de nós. Senti falta de negros, vi poucos. Achei as pessoas muito parecidas com as que vemos no Brasil na maneira de vestir e também nos modismos: muita gente tatuada, muitas cabeças com cores como azul, roxo, rosa. Nem dá pra falar em população de rua, vimos dois ou três mendigos – e não ficamos na área mais chique, e sim no que seria a Lapa de Santiago (mas sem os bares). Os programas de TV eram tão iguais que deu até nervoso (até a praga do tr*vago!). Mas no rádio há uma diferença brutal: cerca de 80% do que se ouve é espanhol, para 20% em inglês.
No primeiro dia, quando achávamos que teríamos pouco tempo, além do La Moneda e seu Centro Cultural vimos a Plaza de las Armas, a Catedral, Prédio dos Correios, Mercado Central e o Cerro San Cristóban – de onde você vê a cidade inteira e descobre que Santiago é uma ilha cercada de montanhas por todos os lados. A neve, mesmo distante e pouca, já causou alguma comoção. Depois do agente de viagem baiano, cruzamos com um operador de turismo que morou no Méier, o Guilhemo, outro encontro valioso. Almoçamos no Pátio Bella Vista na hora da janta, pollo y papa + Pisco Sour (pra mim, claro). Já na cama, filhote conclui com olhinhos brilhando: “Se acabasse agora, já tinha valido a pena”. Sim, principalmente depois de ouvir essa frase. Transbordei de contentamento num sorriso do tamanho da montanha.

O funicular que leva ao topo de El Cerro, e a imagem de Nossa Senhora
Ainda teve passeio até a vinícola, indo de metrô; visita ao Museu de Artes Pré-colombianas – que vale muito a pena, principalmente a parte “Chile antes do Chile” – e o Vale (pouco) Nevado. Ok, a gente sabia que estava fora de temporada, o que significou uma nevezinha que deve ser colocada à noite só pra que os turistas não fiquem muito frustrados. Por outro lado, encontramos o lugar quase vazio (imagino que em julho aquilo seja tipo praia no Rio em domingo de sol). Então pudemos andar e subir no nosso ritmo e desejo, deitar ao sol nas pedras, tirar fotos ridículas e curtir as montanhas sem ser incomodadas. Havia a expectativa de como ficaríamos a três mil metros, mais de uma vez perguntaram: “Vocês têm problemas com altitude?” E minha resposta sincera era: “Vamos saber agora”. Djubs teve uma dor de cabeça passageira, eu nem isso (o que me animou para o Himalaia). Fiquei encantada com aquela imensidão, paisagens que se mostram à medida em que você sobe mais um pouco, passa um pedra, dobra uma curva. Ao chegar achamos que cinco horas seria muito, mas ainda eu poderia ficar mais, se as nuvens não encobrissem o céu e batesse um vento frio da porra (cancela o Himalaia).

Na América pré-Colombo já tinha abraço coletivo <3

Bola de neve e…eu falei fotos ridículas?

Na van que nos trouxe, acho que só eu e o motorista estávamos acordados; fui reparando em tudo e então comecei a dominar bem a geografia da cidade e me localizar com alguma segurança – mas então era a hora de voltar. Jantamos no Tiramissu, indicação catada na internet, uma pizza ótima e atendimento idem. Consegui agendar um táxi para nos pegar de madrugada escrevendo em portunhol pelo Whats up – me senti muito ninja. No avião, um bônus espetacular: sobrevoar a Cordilheira dos Andes. Que assombro, que visão estonteante. No caderninho de desejos sublinhei: voltar.

Acho que demorei a escrever porque, segundo uma personagem da Isabel Allende, quando a gente viaja de avião a alma desencontra do corpo, porque viajam em velocidades distintas. Por isso a gente leva um tempo até assentar; no caso de uma viagem rápida, esse desencontro é, imagino eu, ainda maior: quando minha alma tava se instalando no Chile o corpo chegava ao Galeão e, no mesmo dia, foi fazer compras no Guanabara. Mas agora já me encontrei, corpo e alma e tudo mais, renovada como só as viagens fazem com a gente. Revigoram nosso espírito, nos lembram de que há muito mais a fazer e viver, e que a gente dá conta, eventually.
Helê
Trilha sonora: minha Radiohead não parou de tocar um só instante em Santiago, porque é assim que ela funciona, no matter where. Em geral faz adaptações de acordo com o lugar, algumas músicas óbvias; outras , sabe-se lá porque são executadas. Na playlist Chi-chi-le-le tocou muito: “Soy loco por ti, América”, com o Caetano; “Cordilheira”, Simone; Juan Luís Guerra, que ouvi lá muitas vezes; “The good life”, na deliciosa gravação do Ben l’Oncle. “Fantasy”, do Earth, Wind and Fire” nós ouvimos na pizzaria e decidi que era ideal para as montanhas do Vale Nevado. “Sobre todas as coisas”, tocou por causa dos versos “Ou será que o deus/Que criou nosso desejo é tão cruel/Mostra os vales onde jorra o leite e o mel/E esses vales são de Deus”. Mais o Coiso também apareceu: “Vá morar com o diabo” entrou no set por causa do Casillero del diablo, lógico. E a música que mais ficou na cabeça, o tempo inteiro, ainda agora enquanto escrevo esse post, chama-se “Dança do ouro”, do Boca Livre. Seria muito mais adequada para Vanessa, que acabou de voltar do Peru, já que fala do sol que nasce em Cuzco. Mas talvez por causa de “Nada do que foi será/Ao sul dessa América/Tão linda” , essa foi a canção da viagem.
Thanks to: Geide, Ju Branco, Priscilla Caetano, Grazi, Lucinha, Ângela.
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