Abecedário 2019

AmarElo

Quando assisti ao vídeo da canção “AmarElo”, que sampleia o “Sujeito de Sorte”, do Belchior, achei bacana, corajoso – puxa, misturar a Pablo Vittar com rap, que inusitado! Mas foi só isso, não despertou uma curiosidade maior. Não vejo muitos clipes no YouTube, nem tinha muito contato com rap (até me encantar com Baco Exu do Blues); fui atrás do burburinho da minha bolha. Que novamente se alvoroçou quando saiu o álbum, e comecei a ler indicações entusiasmadas aqui e ali. Gilberto Gil falou bem, Luiz Antônio Simas se derramou em elogios e então umas amigas queridas (do único grupo de whatsApp que eu participo voluntariamente) também recomendaram e eu decidi ouvir.

Pablo Vittar, Majur e Emicida

Por uma dessas intuições inexplicáveis eu achei que deveria escutar AmarElo inteiro e na ordem em que foi gravado, como fazíamos com os álbuns quando eles se chamavam discos. Decisão sábia, porque há nesse trabalho uma estrutura, uma coesão que fica mais intensa se você começa pelo início – ou melhor, por “Principia”, a primeira faixa, que me arrebatou como há muito não acontecia. (Na real, como raramente me aconteceu na vida). Os versos, os ritmos, a voz impecável da Fabiana Cozza, o sermão de pastor (!), o refrão que até hoje me comove quando ouço, com sua simplicidade e verdade profunda, tudo me deixou impactada de cara. Não esperava concordar com todo mundo logo assim, de primeira.

Mas era apenas o começo. Outras lindezas foram se sucedendo: “A ordem natural das coisas” parece feita pra quem, como eu, acorda muitas vezes antes do astro que é rei mas só vem depois de muita gente sair pra vida. Também me reconheci em “Pequenas alegrias da vida adulta”, que me estampou um sorriso largo mesmo no meio de uma tristeza grande. Àquela altura eu estava muito surpresa em me sentir tão à vontade numa casa em que eu entrava pela primeira vez. Nunca havia escutado Emicida antes (fora o vídeo). E surge “Quem tem um amigo tem tudo”, um maravilhoso samba sincopado com a participação de ninguém menos que Zeca Pagodinho. Aí eu tirei os sapatos e fiquei totalmente à vontade, morando nesse disco.

Eu tinha uma vaga implicância com o nome Emicida (pela associação com morte), e sabia pouco sobre rap e hip hop, além dos esteriótipos. Sempre respeitei como expressão artística, e reconhecia sua importância como cultura da periferia, mas à distância me parecia muito zangado, masculino, violento, ritmicamente limitado. Esteriótipos, eu disse. Imagina a minha surpresa com as canções solares desse álbum que começa dizendo: “Com cheiro doce da arruda/penso em Buda calmo/Tenso eu busco uma ajuda às vezes me vem um salmo”! Que tem risada de criança, história divertida, e Fernanda Montenegro declamando. Que traz batidas variadas, do samba em suas muitas vertentes ao balanço da dupla Ibeyi. Cada uma das minhas suposições superficiais sobre o gênero e o artista foram sendo amassadas a cada faixa. E a única ideia correta que eu tinha, de que as letras eram fortes e boas, também estava longe da realidade, porque são ainda melhores, incrivelmente poéticas e sofisticadas, um trabalho de ourivesaria em versos.

Desde a primeira audição eu praticamente não passo um dia sem ouvir AmarElo; já perdi a conta de para quantas eu pessoas eu já recomendei. Não insisto mais porque eu sei que a ênfase excessiva pode ter um efeito contrário. Só posso falar por mim: AmarElo me pegou no colo várias vezes, e é a ele que eu tenho recorrido e dado a mão nesses tempos cinzentos. Esse álbum talvez desempenhe em 2019 o papel que em 2018 foi do musical “Elza”: ser uma luz no fim do túnel, uma lembrança da minha (nossa) força, de tudo que somos capazes de suportar e superar.

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