Cartas de amor aos livros

O fim do ano está chegando, e ao mesmo tempo em que refletimos sobre o que passou, começamos a nos programar para as festas e celebrações, que eu, particularmente, pretendo aproveitar como há muito tempo não aproveitava – afinal, não estamos todos precisando de luz, amor, paz e rabanadas?

Nesse clima meio-retrospectiva-meio-compras-de-Natal, quero aproveitar o espaço aqui do blogue para divulgar a carta aberta do Luiz Schwarcz, editor do grupo Companhia das Letras, a todos os amantes dos livros. (Os grifos são meus.)
-Monix-

Foto: Daniel Alvarez, via Unsplash

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O livro no Brasil vive seus dias mais difíceis. Nas últimas semanas, as duas principais cadeias de lojas do país entraram em recuperação judicial, deixando um passivo enorme de pagamentos em suspenso. Mesmo com medidas sérias de gestão, elas podem ter dificuldades consideráveis de solução a médio prazo. O efeito cascata dessa crise é ainda incalculável, mas já assustador. O que acontece por aqui vai na maré contrária do mundo. Ninguém mais precisa salvar os livros de seu apocalipse, como se pensava em passado recente. O livro é a única mídia que resistiu globalmente a um processo de disrupção grave. Mas no Brasil de hoje a história é outra. Muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias e as editoras terão dificuldades de escoar seus livros e de fazer frente a um significativo prejuízo acumulado.

As editoras já vêm diminuindo o número de livros lançados, deixando autores de venda mais lenta fora de seus planos imediatos, demitindo funcionários em todas as áreas. Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos— gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil.

Na Companhia das Letras sentimos tudo isto na pele, já que as maiores editoras são, naturalmente, as grandes credoras das livrarias, e, nesse sentido, foram muito prejudicadas financeiramente. Mas temos como superar a crise: os sócios dessas editoras têm capacidade financeira pessoal de investir em suas empresas, e muitos de nós não só queremos salvar nossos empreendimentos como somos também idealistas e, mais que tudo, guardamos profundo senso de proteção para com nossos autores e leitores.

Passei por um dos piores momentos da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive que demitir seis funcionários que faziam parte da Companhia há tempos e contribuíam com sua energia para o que construímos no nosso dia a dia. A editora que sempre foi capaz de entender as pessoas em sua diversidade, olhar para o melhor em cada um e apostar mais no sentimento de harmonia comum que na mensuração da produtividade individual, teve que medir de maneira diversa seus custos, ou simplesmente cortar despesas. Numa reunião para prestar esclarecimentos sobre aquele triste e inédito acontecimento, uma funcionária me perguntou se as demissões se limitariam àquelas seis. Com sinceridade e a voz embargada, disse que não tinha como garantir.

Sem querer julgar publicamente erros de terceiros, mas disposto a uma honesta autocrítica da categoria em geral, escrevo mais esta carta aberta para pedir que todos nós, editores, livreiros e autores, procuremos soluções criativas e idealistas neste momento. As redes de solidariedade que se formaram, de lado a lado, durante a campanha eleitoral talvez sejam um bom exemplo do que se pode fazer pelo livro hoje. Cartas, zaps, e-mails, posts nas mídias sociais e vídeos, feitos de coração aberto, nos quais a sinceridade prevaleça, buscando apoiar os parceiros do livro, com especial atenção a seus protagonistas mais frágeis, são mais que bem-vindos: são necessários. O que precisamos agora, entre outras coisas, é de cartas de amor aos livros.

Aos que, como eu, têm no afeto aos livros sua razão de viver, peço que espalhem mensagens; que espalhem o desejo de comprar livros neste final de ano, livros dos seus autores preferidos, de novos escritores que queiram descobrir, livros comprados em livrarias que sobrevivem heroicamente à crise, cumprindo com seus compromissos, e também nas livrarias que estão em dificuldades, mas que precisam de nossa ajuda para se reerguer. Divulguem livros com especialíssima atenção ao editor pequeno que precisa da venda imediata para continuar existindo, pensem no editor humanista que defende a diversidade, não só entre raças, gêneros, credos e ideais, mas também a diversidade entre os livros de ambição comercial discreta e os de ambição de venda mais ampla. Todos os tipos de livro precisam sobreviver. Pensem em como será nossa vida sem os livros minoritários, não só no número de exemplares, mas nas causas que defendem, tão importantes quanto os de larga divulgação. Pensem nos editores que, com poucos recursos, continuam neste ramo que exige tanto de nós e que podem não estar conosco em breve. Cada editora e livraria que fechar suas portas fechará múltiplas outras em nossa vida intelectual e afetiva.

Presentear com livros hoje representa não só a valorização de um instrumento fundamental da sociedade para lutar por um mundo mais justo como a sobrevivência de um pequeno editor ou o emprego de um bom funcionário em uma editora de porte maior; representa uma grande ajuda à continuidade de muitas livrarias e um pequeno ato de amor a quem tanto nos deu, desde cedo: o livro.

Luiz Schwarcz

Desistir/insistir

Tenho dificuldade em deixar coisas pelo caminho, unfinished business me assombram. Essa característica, na maioria das vezes positiva, tem um lado desagradável, que é me manter presa ao que não me dá prazer. Oscilo entre a curiosidade sobre onde aquilo vai dar e a obrigação muitas vezes auto imposta de ir até o fim. Há situações em que pagar pra ver vale a pena; em outras o preço pode ser alto.

Foi o caso da última temporada de House of Cards, por exemplo, oito episódios de desperdício de dinheiro e bons atores. Na verdade, a série já tinha perdido a mão lá pela 3ª ou 4ª temporada, e o Kevin Spacey dificultou a vida dos roteiristas sendo um cretino em sua própria. Então essa 6ª temporada foi como certos relacionamentos: tinha tudo pra dar errado — e deu. Insisti porque tinha a sensação de que perderia algo se não fosse até o fim. Acabei perdendo: meu tempo. 

Minha amiga C. abalou minha conduta ao advogar exatamente contra a perda de tempo. Ela diz que larga um livro sem piedade quando ele não diz logo a que veio (eu tenho pressa e tanta coisa me interessa toca na Rádio Cabeça).  C. me disse isso justo quando eu estava lendo um livro que não estava agradando. Pensei em parar mas quando vi que estava na metade, decidi ir adiante. E que decisão acertada!

A história de Okonkwo, guerreiro de uma sociedade africana pré-colonial, patriarcal e religiosa era apenas interessante, não conseguia me envolver. Até a chegada do homem branco. De uma maneira sorrateira e rápida, tendo a religião como instrumento, acontece uma transformação profunda e definitiva naquela sociedade. Nunca um título foi tão adequado quanto esse “O mundo se despedaça”. E só no contraste produzido pelo choque entre as culturas percebi a riqueza dessa história que se passa na África antes de ser África — essa invenção de invasores –, e do ponto de vista de quem já estava lá. Nesse caso, ir até o fim foi necessário e recompensador, a narrativa só se revela plenamente ao final.

(Aí na semana passada, quando li a notícia sobre o suposto missionário que foi morto a flechadas ao tentar fazer contato com um povo que há séculos vive isolado, só pude sentir simpatia pelos nativos.)

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Diante desses episódios recentes, sigo librianamente indecisa sobre ir adiante com o que não parece promissor. Should I stay or should I go?

Helê 

Aquele um


No destaque, August Landmesser recusando-se a fazer a saudação nazista (Hamburgo13 de Junho de 1936).

Retomando a série Aquele um, iniciada aqui em 2015, com esse moço desafinando o coro dos contentes (como diria Torquato Neto). Há dúvidas sobre a identidade da pessoa em destaque — mas nenhuma sobre sua dignidade e destemor.

Helê

O demônio do meio-dia

Já disse aqui algumas vezes: eu não resisto a um bom título. Menos ainda se vier acompanhado de uma boa capa. Por isso eu lembro bem da forte impressão que me causou o livro de Andrew Solomon assim que vi.  O nome,  estampado sobre a “Noite Estrelada”, de Van Gogh, me atraiu de imediato — e o subtítulo não diminuiu o interesse. Entrou logo na minha lista de desejos, mas só foi comprado numa promoção, em março deste ano. 

O “demônio” permaneceu na estante aguardando sua vez. Quando finalmente decidi abri-lo, seguiram-se semanas de leitura empolgada e pertubação alheia — no caso eu perturbando os outros, como faço sempre quando fico levemente obcecada por algo que considero inegavelmente interessante, original, revelador. O “demônio” se enquadra em todas essas categorias e outras mais.

Comecei a leitura no dia em que questionei os limites entre tristeza e depressão, mas não esperava resposta rápida de um livro de mais de 500 páginas. Para minha surpresa, encontrei uma boa definição logo de início:

“Talvez a depressão possa ser descrita como o sofrimento emocional que se impõe sobre nós contra a nossa vontade e depois se livra de suas circunstâncias exteriores.”

 Não é única nem definitiva, muitas outras definições se sucedem. Acontece que Solomon não perde tempo nem se prende a rigores acadêmicos: de cara ele identifica o objeto, desafia alguns pressupostos (como a demonização dos medicamentos) e faz  sugestões de tratamento.  No primeiro capítulo. Isso não faz do livro algo superficial, há outras muitas páginas para aprofundar esses tópicos e esquadrinhar teorias. Apenas deixa claro a intenção do autor de ser realmente útil para deprimidos e os que com eles convivem – ou seja, quase todo mundo.

Solomon mostra-se  um pesquisador dedicado e incansável, praticante da melhor tradição do jornalismo investigativo que persegue um assunto como quem procura não apenas prender um criminoso, mas desmantelar o cartel. Olha o tema sob vários ângulos possíveis, revirando-o muitas vezes, como quando tentamos solucionar o Cubo Mágico. Transita entre ciências diversas e não despreza pistas, por mais improváveis e exóticas que pareçam. Tem a invejável capacidade de reconhecer valor naquilo em que não acredita – como a fé religiosa, por exemplo -, qualidade rara porém imprescindível a um investigador honesto. Embora escreva na primeira pessoa muitas vezes durante toda a narrativa, esforça-se sinceramente para tentar compreender os contornos específicos da depressão para negros e negras, para populações pobres, em países não-ocidentais. A condição de homem branco bem-sucedido, fruto de uma família estável, Solomon utiliza para provar que a doença pode alcançar mesmo quem, à primeira vista, pode parecer imune a ela.  

Diz-se com frequência que a depressão é algo que acomete uma classe privilegiada numa sociedade desenvolvida; na verdade, é uma coisa que uma certa classe tem o luxo de comunicar e articular. (…) A depressão — sua urgência, seus sintomas e modos de sair dela — é determinada por forças muito fora de nossa bioquímica individual, por quem somos, onde nascemos, em que acreditamos e como vivemos.”

Acrescido a tudo isso, Solomon escreve muitíssimo bem – condição sem a qual sua obra ainda seria importante, porém chatíssima. Sua prosa evita termos técnicos desnecessários, possui fluidez e humor. Ele costura com maestria a pesquisa vasta e séria com sua própria trajetória como deprimido, nos aproximando dele e do tema, humanizando a  frieza dos dados e das estatísticas. Outros personagens e suas lutas são descritos com respeito e afeto, o que provoca uma leitura solidária, que desperta no leitor empatia — um sentimento tão escasso quanto necessário, seja qual for sua relação com a depressão. 

“O demônio do meio-dia” foi para mim, desde o início, tanto um tratado minucioso quanto uma narrativa intimista, que me fez sentir acolhida. Mergulhar numa “anatomia da depressão” pode ser uma tarefa incômoda, para dizer o mínimo: encontrei várias pessoas que desistiram do livro, outras que sequer começaram, apesar de interessadas; uma pessoa desencorajou a leitura enfaticamente. Encarar demônios nos deixa vulneráveis a seus efeitos, é verdade; mas também é a única maneira de nos fortalecer contra eles e, eventualmente, vencê-los. 

Helê

 

 

 

Dia da Consciência Negra

“Suportar é a lei da minha raça, tá ligado?”
Lázaro Ramos e Wagner Moura em Ó paí, ó, de Monique Gardenberg (2007).

Helê

Minas

  • La Otra já contou* que andei pelas Minas Gerais, então vou fazer este post mistura de ‘pastilhas’ e ‘diarice’, porque é o que temos no momento. Está sendo difícil retomar o rumo, o prumo e a escrita depois dessa eleição inimaginable (nas palavras de uma francesa atenta e querida). Eu já nem lembro pronde mesmo que vou, mas vou até o fim (Chico Buarque®).

 

  • Essa foi uma viagem programada muito antes das eleições e de seu desfecho infeliz. Eu e meu amigo J. nos encontramos no dia 30 de outubro, ambos com o hematoma da desilusão grande e recente em nós. Poderíamos ter desistido, mas seguir adiante foi nosso primeiro ato de resistência – se não à ditadura, pelo menos ao desânimo (o que, convenhamos, não é pouco).

  • Conheci Ouro Preto em outro século, durante um carnaval – eu ainda era universitária e magra, veja você. Outra vida. Voltei décadas depois e encontrei uma cidade encantadora, acolhedora, altiva,  surpreendente. Desta vez visitei igrejas e museus, entrei numa mina desativada, conheci o Teatro Municipal, mergulhei em arte e história. Devo ter comido o equivalente a um pequeno leitão em forma de torresmo e provei muitas cachaças e cervejas, porque eu entendo cultura e arte num sentido beeeem amplo e saboroso. 

 

  • Um destaque? Os guias. Pode ser que a gente tenha tido sorte (em alguma coisa havemos de ter, oras!). Mas o fato é que não esbarramos em meninos engraçadinhos recitando datas e textos decorados. Encontramos guias turísticos bem preparados, com narrativas que fugiam dos discursos chapa branca. Mais que isso: que destacavam o protagonismo dos negros na trajetória da cidade e, por extensão, do país. Ouvi várias vezes a correta expressão  “africanos escravizados”. E aprendi coisas incríveis sobre o aproveitamento do conhecimento prévio de arquitetura, logística e mineração desses trabalhadores. 

  • Em São João del Rey encontramos a melhor cervejaria da viagem,  Ovelha Negra, a melhor anfitriã de AirB&B e vivemos uma experiência inacreditável para um paulista e uma carioca: dormimos de janela aberta numa casa de rua, sem muro. Mind blowing.

 

  • São João conservou (e bem) seu centro histórico e continuou a ser cidade em volta dele. Já Tiradentes parece toda ela uma cidadezinha de boneca, toda lindinha, conservada e…cara. Colada em uma serra imponente, deve ter trilhas e passeios interessantes que não tive tempo de fazer. A Maria Fumaça que liga as duas cidades só fez  aumentar a minha vontade de viajar num trem de verdade.

  • Em Belo Horizonte, a saudade e o cansaço já pesavam na mala. Mas aí, laralá, lirili, encontrei com amigas geniais que tornaram tudo leve e amoroso. Compartilhamos angústias e desilusões – além de gargalhadas e cervejas. Nesse momento de incertezas variadas e medos difusos, reafirmar afetos foi restaurador. Como já disse em outro lugar, as minas mais preciosas estão em BH. 

 

  • No mais, colocar uma mochila nas costas e viajar pelo interior do país aos quase 50 anos pode fazer muito bem para sua autoestima. A minha voltou mais robusta. ;-) 

 

Helê

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Thanks, Mr.Lee

E a gente perde você logo agora, com tanto vilão pra combater!…

Helê