Aponte o racista

  • No dia 2 de junho de 2020, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, caiu do 9º andar do Condomínio Pier Maurício de Nassau, um dos imóveis de luxo no Recife. A mãe dele tinha descido ao térreo do prédio para passear com a cadela da patroa, Sarí Corte Real, que estava responsável por cuidar do menino. Sari Corte Real é esposa de Sérgio Hacker Corte Real (PSB), então prefeito de Tamandaré, no Litoral Sul de Pernambuco. Estávamos em plena pandemia da Covid, quando muitas empregadas domésticas estavam afastadas do trabalho.
  • Sari foi presa em flagrante à época da morte do menino, por homicídio culposo, mas pagou fiança de R$ 20 mil e foi liberada. Em maio de 2022, foi condenada a 8 anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz com resultado morte mas responde ao processo em liberdade. ( Fonte: G1)

Esse caso desperta em mim os piores sentimentos, uma dor que não consigo nem começar a sentir e uma raiva visceral por essa mulher, eu não consigo falar muito sobre isso. Todo o caso é por demais emblemático do pior do Brasil e da sua autoproclamada elite, em geral composta por gente torpe a ponto de desconsiderar a vida de qualquer um que não seja um de seus pares.

Então ao invés de destacar a perda de Mirtes, essa crueldade sem nome e sem fim, eu quero estampar aqui a cara da criminosa – não de cara lavada e blusa branca como apareceu na tv, mas no ápice da sua vaidade impune, para que ela nunca seja esquecida nem tenha paz.

Helê

Projeto

Para a nossa newsletter de ontem escrevi uma ou duas linhas boas que não quis deixar restrita aos assinantes. São daquelas muitas que surgem durante a escrita, num fluxo direto: cabeça, mãos, teclado e ôpa! de onde veio essa ideia que eu não tinha pensado antes? (Mais uma razão para receber a nossa news: somos pressionadas a escrever ao menos uma vez por semana pelo motor mor do jornalistmo, o prazo. E a pressão às vezes é uma boa editora).

Falamos na news sobre a pauta incontornável desde que o assassinato de George Floyd ganhou as redes sociais e a mídia: o racismo e o extermínio da população negra. A curva da nossa indignação atingiu seu pico e levou às ruas milhares de americanos e também outros cidadãos do mundo. Ainda vivemos todos ameaçados pelo novo coronavírus – em maior o menor grau, variando de acordo com a competência e obtusidade de cada chefe de estado -, mas não foi possível adiar. Diante da brutalidade policial exercida lenta e deliberadamente, sem um traço de constrangimento ou preocupação, a pandemia que vitimou mais de 100 mil americanos pareceu menos letal que a truculência repressiva do estado. Hoje, o resultado da autópsia de Mr. Floyd indicou que ele estava infectado com o vírus da Covid-19, mas nesse caso a doença foi uma comorbidade, entre tantas outras, para a causa mortis que adoece e mata há mais tempo: o racismo.

Foto: Nelson Almeida/GettyImages

O Brasil, que se esforça pra ser sempre o melhor pior, consegue tornar ainda mais dramática a questão com uma absurda lista de crianças e jovens negros assassinados pela ação do aparato policial militar. A quem, aliás, não se pode acusar de incoerência: foi constituído originalmente para proteger a propriedade e as elites, e se mantém fiel aos propósitos fundadores, utilizando em suas hostes membros das mesmas classes que são treinados a abater.

Photo by: Miami- Dade Corrections

Talvez por isso as cenas que mais têm me emocionado nas manifestações americanas são aquelas em que policiais demonstram apoio aos manifestantes. Os que se ajoelham, no gesto ressignificado por Kaepernick, os que ouvem as pessoas, os que garantem a segurança delas mais que as propriedades, os que abraçam. Aqueles que, mesmo que momentaneamente, rejeitam anos de treinamento, o privilégio da impunidade e da força e recuperam sua humanidade. Talvez seja preciso começar por aí a desarmar esse monstruoso mecanismo tão bem azeitado ao longo da história. Ou a gente vai continuar, como acertadamente definiu Emicida, “por nossa conta e risco nesse grande projeto de matar preto que é o Brasil”.

Helê

Dia da Consciência Negra

“Suportar é a lei da minha raça, tá ligado?”
Lázaro Ramos e Wagner Moura em Ó paí, ó, de Monique Gardenberg (2007).

Helê

Serena

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O uniforme que a Serena Williams usou em Roland Garros este ano não será aceito novamente “em respeito ao jogo e ao local“, afirmou um dirigente do torneio cujo nome eu não vou me dar ao trabalho de escrever aqui. Perguntado especificamente sobre o traje de Serena, esse macho afirmou “fomos longe demais”. Sim, ninguém foi tão longe quando Serena no tênis, monsieur. E é impressionante como uma mulher negra, de quem se exige força acima da média — de qualquer média — precisa ser contida, regulada, subjugada por normas que, se não existem, são rapidamente criadas. Uma mulher negra bem-sucedida incomoda muita gente, Serena Williams incomoda muito mais.
É de cair você sabe o que de onde.
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Serena não entrou na controvérsia e quando perguntada deu uma resposta espirituosa, fazendo um jogo de palavras para dizer que na moda não é bom se repetir (“you don’t want to be a repeat offender“). Ela conhece bem todas as regras do jogo para não se indispor com dirigentes, muito menos pra bater palma pra maluco dançar. A roupa já foi usada e amplamente noticiada: na ocasião, Serena fez referência ao filme “Pantera Negra” e dedicou seu retorno às quadras às mães que, como ela, tiveram problemas no parto. Essa palhaçada toda serviu para me ensinar uma palavra nova para algo que eu conheço há muito tempo: misogynoir, a parceria perversa entre o machismo e o racismo. Ah, também serviu para ensinar uma lição de marketing para quem produziu aquele clip vexatório que deveria melhorar a imagem do Neymala. A Nike mostrou como se apoia um atleta e o que é publicidade inteligente (venceu até a minha repulsa a fazer propaganda gratuita)
“Você pode tirar o traje de um super herói, mas nunca pode tirar seus superpoderes”.
Helê

Festa na favela ou A alegria de ser (rubro) negro  

Há tempos quero escrever sobre isso, mas não achava o timing certo. Não podia ser depois de  um título, goleada ou vexame; tinha que ser num momento em que o Flamengo não estivesse nem rondando as últimas posições da tabela nem no G4. Status raro para um clube que não sabe viver sem sobressaltos, e passa de favorito a condenado em uma rodada. Minha amiga Ângela inclusive instituiu a expressão “Crise na Gávea” para os momentos tensos da vida cotidiana, porque carrega a dose exata de drama e gravidade.

Mas o que quero contar aqui tem a ver com o Flamengo, mas não só; relaciona-se com o futebol, mas não apenas; é ainda mais importante que essas entidades excepcionais. Falo do nascimento, ou seria melhor dizer, da construção da minha identidade flamenguista – ou deveria dizer minha nacionalidade rubro-negra. De cara eu devo dizer foi uma escolha, das primeiras que fiz na vida e, provavelmente, uma das mais determinantes. Eu decidi ser Flamengo.

Final dos anos 70, começo dos 80, eu cursava o primário (o atual fundamental), na escola Debret, em Vila Valqueire. Na minha família ninguém era muito ligado em futebol, só descobri o time dos meus pais quando perguntei. Mas naquela época não era possível ficar alheia ao esporte; soube logo que o Flamengo tinha um timaço, se não me engano havia ganhado um tricampeonato. Lembro-me do Zico, no início do que viria a ser sua canonização, e de outros craques como Adílio e Júnior. Comecei a dizer que torcia pelo time, comecei a ser Flamengo. E nas acaloradas e fundamentadas discussões que temos aos 10 anos de idade, os adversários debocharam de mim dizendo que o Flamengo é time de favelado, de preto, de pobre – isso numa escola pública do subúrbio, onde a maioria poderia se enquadrar nessa classificação.

Lembro com uma clareza assustadora e surpreendente de ter refletido sobre aquelas acusações. Eu não gostei de ser chamada de favelada –  talvez apenas porque não fosse, não tenho certeza. Preta e pobre eu era mesmo; por que então aquilo era um xingamento? Não fazia sentido. E, mais importante, o Flamengo era campeão e, naquele momento, o melhor time do Rio de Janeiro. Então, talvez, ser preto, pobre (e até favelado) só fosse um xingamento por despeito de quem não podia ser tão bom quanto nós. E ainda tinha esse “nós”: estar entre os melhores vinha com um sentido de coletividade e pertencimento, eu não estava só porque, afinal, o Flamengo é uma nação. Aos 10 anos fiz, sozinha, minha primeira desconstrução, desmontando o que me jogaram como ofensa e costurando como elogio – o que é o exercício 1 do primeiro livro de como ser negro nesse país (talvez no mundo). É sobre isso o orgulho negro que alguns têm tanta dificuldade (e/ou má vontade) de entender.

Voltando para a infância: depois dessa elucubração solitária, na primeira disputa em que a filiação clubista entrou em questão e que me acusaram de ser de um time de preto, pobre e favelado, eu devolvi cheia de propriedade e autoafirmação (embora desconhecesse essas palavras) e com a mão nas cadeiras: “E daí?!” Tá, eu reconheço que não fui muito eloquente, mas foi uma libertação, talvez a primeira de muitas. E por isso eu tenho com meu clube uma relação especial, profunda, e uma enorme gratidão. Porque foi aquele time vencedor,  e aquela torcida apaixonada e enlouquecida – que chegou até mim sem que houvesse uma figura dedicada a me converter, mas que me influenciou com sua força magnética – que concederam minha primeira identidade. Ser Flamengo, para mim, está intimamente ligado a ser negra e de origem pobre, e foi o Flamengo quem primeiro me ensinou a ter orgulho disso. Só por isso não perco a oportunidade de cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro negra.

 

Helê

OJ Simpson – para entender os EUA

I think that you find among black people a incredible amount of forgiviness for anybody living to the pain of being black in America”.

Walter Mosley, escritor, no documentário OJ made in America

OJ Simpson foi uma leve obsessão da qual só o carnaval me libertou. Volta e meia tenho uma, quando algo me arrebata por mais tempo que o esperado (a série Downton Abbey, a canção Elephant Gun, os livros da Ferrante). Na rotação acelerada dos dias que correm minha timeline já gritou “Next!” e nem fala mais nisso, mas ainda tenho uma ou duas coisas a dizer. Afinal, depois de dez episódios da série “People vs OJ Simpson” e das cinco partes de mais ou menos hora e meia do documentário “OJ Made in América”*,  ‘obsessão leve’ talvez tenha sido um eufemismo.

Eu me lembro muito bem do caso porque na época eu já trabalhava com relações raciais. Eram meus primeiros anos no Centro de Estudos Afro-Asiáticos, e eu editava junto com a Márcia Lima (beijo, Marcinha!) um clipping chamado Questões de Raça. Lembro da capa da revista Time, que empreteceu o Simpson, uma manipulação grosseira que gerou tamanho rebuliço que ecoou aqui. Na ficção esse episódio aparece rapidamente, no documentário nem isso, mas não porque tenha sido uma polêmica pequena. É que foram muitas e tantas que algumas, mesmo relevantes, não couberam nas narrativas posteriores. Além de um compêndio sobre relações raciais nos EUA, o julgamento de Simpson rende longos debates sobre sexismo, espetacularização da mídia, culto à celebridade, sistema jurídico americano, para citar alguns tópicos apenas.

Atualmente, na era da pós-verdade e do RIPjornalismo, é interessante comparar a série e o documentário e perceber a distinção entre ficção e informação. A série, mesmo fidedigna, é uma peça de entretenimento. Por isso cede espaço para tramas como um suposto caso entre os promotores Márcia Clark e Chris Darden. Isso não desmerece a série, apenas a difere do documentário . “OJ made in America” já enuncia no título a ambição de explicar as complexidades em torno do caso para além do julgamento, começando muito antes e terminando bem depois. Um trabalho de fôlego, em que o excesso de fontes e material deve ter sido mais um complicador que um facilitador.

O corte temporal distingue bastante os dois produtos: a série se concentra no crime e no julgamento enquanto o documentário vai e volta no tempo, mostrando de que maneira foi forjado esse herói americano, como ele foi reconhecido e aceito por todos enquanto personificou o negro excepcional e bem comportado – quase branco. E como, depois de acusado e rejeitado, foi resgatado pelos negros, um bode expiatório às avessas, cuja absolvição simbolizou uma revanche contra a sociedade e, particularmente, a polícia de Los Angeles.

Diante do enorme desafio de reencenar um dos acontecimentos mais registrados na história dos meios de comunicação, a série tem acertos e (em menor quantidade) falhas. John Travolta  errou na mão, fazendo uma caricatura exagerada do Shapiro que incomodou tanto quanto as falsas sobrancelhas. Já o David Shwimmer (aka Ross) conseguiu o improvável : me fez simpatizar com um Kardashian. Mais que isso: eu fiquei com pena dele porque  ele é o cara que chega dando voadora quando o amigo tá brigando, sem nem querer saber o motivo. E aos poucos conclui que o amigo foi desonesto com ele. O grande e imperdoável miscasting é Cuba Gooding Jr. – e não pelo talento, que eu até acho que ele tem. Mas lhe falta a beleza do Simpson, um  atributo fundamental para entender o personagem. Nos anos 60/70, OJ era um homem lindo, e a beleza tem superpoderes:  nos ilude, encanta e cega.

Além de belo, Simpson era carismático, simpático, charmoso e um atleta excepcional, com conquistas admiráveis.  Para nós, brasileiros, é difícil não pensar nele como culpado porque nunca tínhamos ouvido falar dele antes do processo criminal; ele já nos foi apresentado como um suspeito de assassinato, em fuga, com histórico de violência doméstica. Nada disso foge à verdade, mas ganha contornos diversos quando sabemos que ele era muito mais que isso, antes. Tinha o pacote completo, um conjunto de habilidades que fizeram dele um ícone por 20, 30 anos.

Paralelamente à trajetória do ex-jogador, “OJ made in America”  traça o histórico da relação sempre tensa e brutal entre a polícia de LA e os negros, em que Rodney King foi apenas mais um absurdo. Mostra como a população negra ocupou a cidade sem nunca ter sido por ela acolhida; lembra de outros atletas negros, como Muhhamad Ali que arriscaram suas carreiras em defesa dos direitos civis, enquanto OJ enriquecia mantendo distância de questões políticas e raciais. E, no entanto, foi a raça que o absolveu: o racismo atávico da polícia, que humilhou, condenou  e eliminou muitos negros antes dele provocou dúvidas razoáveis em uma condenação que parecia simples. Essa ironia amarga dividiu a América – e divide até hoje: pesquisa feita no ano passado atesta que ainda hoje negros e brancos divergem sobre a inocência do ex-jogador. O documentário, primoroso,  justifica cada um dos seus muitos minutos: ouve muitas pessoas, de diferentes opiniões e filiações, investiga diversas possibilidades, não recua nem busca saídas fáceis. A série é bacana, mas o documentário é uma oportunidade rara , se não de compreender, mas de conhecer melhor as entranhas de uma sociedade que muito nos influencia, fascina e intriga.

Ezra Edelman, diretor do documentário vencedor do Oscar

Helê

*”OJ made in America está sendo exibindo pela ESPN aos domingos, às 20h.

Figuras escondidas

Hidden figures pode soar um filme desnecessário, quase um contrassenso em 2017. Por que fazer um filme sobre mulheres negras que desempenharam papel relevante na corrida espacial americana, se daqui a alguns dias um negro se despede da Casa Branca após oito anos de governo, provocando manifestações de saudade antecipada no mundo todo? Por que precisamos lembrar de banheiros, bebedouros, assentos no ônibus e lugares específicos nas bibliotecas para negros se hoje, ao menos nos EUA, o que se discute é a segregação de banheiros por gênero, algo que até pouquíssimo tempo atrás parecia inquestionável? Ainda precisamos de filmes falando de um passado difícil e limitado, em que negras e negros, mesmo brilhantes (ou talvez até por isso) precisavam de artimanhas e subterfúgios para conseguir respeito e reconhecimento que outros conseguiam com menos esforço ou merecimento, ou por outra, faziam o dobro para obter a metade?

Sim, ainda precisamos de filmes como esse, porque ainda há muitas figuras importantes escondidas nos cantos de páginas da história – como Henrietta Lacks, por exemplo. Porque se, em 2017, a América ainda precisa compreender que black lives matter, isso significa que ainda não progrediu o suficiente como sociedade. E se restasse alguma dúvida da importância desse filme ela teria se dissipado quando a amiga que estava conosco, várias décadas mais jovem, espantou-se com o primeiro coloured space que apareceu na tela. Não que ela não soubesse (ela é apenas jovem, não desinformada). Mas o impacto da cena, provocado por essa capacidade única do cinema, de colocar você dentro da ação, esse impacto dificilmente pode ser obtido apenas com a leitura. Precisamos contar essas histórias porque, como Mr. Obama disse em seu discurso de despedida, “a raça continua a ser uma força poderosa e divisiva em nossa sociedade” e não podemos take for granted os direitos conquistados. Precisamos continuar falando sobre preconceito e discriminação porque a falta de empatia entre as mulheres grita no filme e ainda hoje encontra eco na sociedade. Precisamos porque sim – ainda precisamos.

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O trio de amigas tratado no filme faz parte da elite científica mundial – trabalhar na NASA nunca foi para qualquer um. E mesmo assim, diante de um carro enguiçado e com a aproximação de um policial (branco, obviamente, estamos na Virgínia segregada dos anos 1960), elas temem. Temem porque sabem que devem temer (como ainda hoje, pelo menos aqui no Brasil, negros temem quando policiais dão a “dura” no ônibus). Quer dizer, estamos falando de um filme sobre racismo, sim, mas não sobre o racismo dos excluídos. São mentes brilhantes, pessoas capazes de pôr um homem (*um homem, note-se, e não um ser humano genérico*) na Lua, mas que por sofrerem com um duplo handicap precisam provar todos os dias que são capazes de dignas da confiança nelas depositada.

Por outro lado, o que a NASA quer é ganhar a corrida espacial. E os engenheiros brancos e homens que comandam a agência sabem que não podem abrir mão de nenhum talento por conta de coisas menores, como o preconceito de toda uma sociedade, ora essa. Então, em nome dos resultados, criam-se as salas dedicadas a mulheres brancas e a mulheres negras (no filme não fica claro se há um espaço para homens negros fazerem cálculos).

Surpreende também, pouco mais de meio século depois da época em que se passa a história, nos darmos conta de que não só havia vida inteligente antes do computador como basicamente todos os cálculos feitos pela equipe da NASA até John Glenn entrar em órbita foram feitos manualmente. Calcular a velocidade de lançamento, o ângulo de reentrada, as resistências dos materiais e outros desafios tão complexos quanto esses era a tarefa desse grupo de mulheres excepcionais. Esse toque tecnológico deixa o filme com um ar meio “Histórias Cruzadas encontra Os Eleitos“.

Em que pese o nome ruim – tanto no original quanto em português – e uma narrativa linear e quadrada, sem sofisticação ou inventividade, Hidden Figures/Estrelas Além do Tempo merece ser visto. Do ponto de vista apenas cinematográfico é bem arroz com feijão – mas isso é o que dá sustança, dizem as avós. Filmes como esse consolidam na memória coletiva os imensos sacrifícios aos quais a população negra foi submetida – não na longínqua época da escravidão, mas ali na esquina da História, 50 anos atrás. Sobretudo no Brasil, onde um eficiente sistema racista ainda mantém a esmagadora maioria da população negra distante dos locais sociais de excelência – e nem foi preciso segregar espaços.

Duas Fridas

Um King a menos

Soube da morte de Rodney King poucas horas depois, vendo essa foto no tumbrl. Logo naveguei procurando informações, mas àquela altura eram poucas. Mesmo hoje não há muito a dizer sobre a causa: faltam exames e trâmites que só saem rapidamente nas minisséries e filmes. Sequer houve o funeral (nunca entendi essa demora americana para sepultar seus mortos).

Difícil avaliar a repercussão da morte de Rodney King nos EUA. Ainda que eu tenha procurado e lido on line sobre o assunto, é como analisar a importância de um artigo recortado pelo clipping: carece de contextos. No Brasil foi pífia, mas o que esperar da cobertura internacional em geral medíocre e feita na base do copiar & colar?
Depois do lançamento do brilhante “Malcolm X” de Spike Lee – que utilizou as cenas do espancamento de Rodney na abertura do filme, causando controvérsia – só fui saber do ex-taxista tornado ativista muitos anos depois, em 2009, acho, num programa de tevê bizarro, uma espécie de BBB Rehab: mostrava o dia a dia numa clínica de desintoxicação em Los Angeles, que recebia ex-famosos e subcelebridades. Foi quando soube que Rodney King lutou durante toda a vida contra o alcoolismo. Aparentava mais idade do que tinha, já havia perdido o viço, mas ainda era um belo homem cuja gentileza com os outros pacientes chamava atenção. Numa definição que li mais de uma vez no dia de sua morte, ele de fato parecia ser “a kind man with a tortured soul”. Torci para que ele se recuperasse e encontrasse paz de espírito; era evidente que a notoriedade lhe tirara tanto ou mais do que havia lhe dado.

Talvez não haja mesmo muito mais a ser dito sobre esse homem comum, com sobrenome de rei, que conquistou fama indesejada aos 25 anos por ser brutalmente espancado pela polícia, e morreu aos 47 no fundo da piscina de sua casa. Mas não consigo evitar a tristeza e a sensação de que podíamos ter feito mais, ou feito melhor. O ataque sofrido por King (filmado num mundo ainda pré-YouTube) mudou a atuação da polícia de Los Angeles e a discussão racial na América, dizem os jornais. No entanto, deixou ou agravou nele problemas que não puderam ser resolvidos – a despeito de terem sido vividos, em grande parte, sob a luz de flashs e câmeras. O que me leva a pensar que, sem abandonar as trincheiras do combate ao racismo, precisamos também lidar com as feridas e sequelas da batalha, minimizar cicatrizes e amparar melhor vítimas e combatentes.

(1ª foto sonofafieldnegro  e 2ª queennubian)

Helê

Identidade & poder

Impressionante como, no Brasil, basta que os negros afirmem sua identidade para que muitos, não-negros em sua maioria,  se ocupem de tomar para si a responsabilidade, a autoridade e o direito de decidirem sobre a identidade dos outros. Imagine qualquer grupo social retratado na imprensa  tendo sua identidade questionada sistemamticamente. Os supostos favelados, os assim chamados ricos, os pretensos brancos, os supostos classe média. Pois não passa uma semana nesse país sem que uma matéria na imprensa retrate os quillombolas como “supostos”, uma maneira, no mínimo, mal-educada de iniciar uma fala, qualquer que seja. Embora nenhuma dessas matérias dedique mais de 3 linhas para aprofundar a questão da identidade, todas elas debocham e desacreditam daquilo que constitui o interlecutor ou personagem como tal, desmantelando de antemão qualquer fato ou reivindicação a ele relacionado. Afinal, se duvidam de sua existência, todo o resto fica também sob suspeita.

Impossível não fazer a correlação com a discussão sobre cotas, que leva inevitavelmente à discussão sobre identidade negra. Há comissão em universidade para isso, intelectuais de diversos matizes a discutir, estatísticas para todos os gostos a opinar sobre algo que antes nunca pareceu ser uma questão: quem é negro no Brasil. Nunca antes na história desse país, como gosta de dizer o presidente Lula, essa questão foi tão discutida, ou, com o perdão da redundância, questionada.

O fato é que a elite brasileira – e entendam aqui este grupo de maneira ampla e diversificada, cabendo os adjetivos branca, intelectual, econômica e tantos mais – acontece que a elite brasileira não aceita nenhuma identidade que não seja por ela outorgada. Quando ela diz quem são os pobres, pretos, favelados, remediados, infratores, delinquentes não há suposições. Basta que qualquer desses grupos tome pra si aquilo que lhe é carimbado como defeito e o transforme em atributo para que a elite lhes queria confiscar a identidade, fragilizando-a.

Helê

Cotas

O jornal distribuído no metrô informa que uma pesquisa da PUC concluiu que há mais universidades com cotas para alunos de escolas públicas do que para negros. O que acaba com o argumento de que “as cotas deveriam ser sociais e não raciais”. A se considerar as conclusões da pesquisa, as cotas sociais já existem, e com muito mais penetração.

“De acordo com o levantamento, cerca de 60% das universidades estaduais e federais do país adotam algum tipo de ação afirmativa. Dessas, quase a metade (42%) são cotas. Entre as universidades que fazem reserva de vagas, a maioria é para alunos de escolas públicas (82%), 59% indígenas e 58%, negros. As modalidades podem ser oferecidas simultaneamente.

Segundo uma das coordenadoras da pesquisa, a antropóloga Elielma Machado,apesar de as cotas raciais não serem tão predominantes quanto as outras duas, são alvo muito mais freqüente de críticas na sociedade. Para ela, uma explicação para o fenômeno está no racismo.”

E você, o que acha? A caixa de comentários está aberta para a polêmica, podem falar.

-Monix-

Nós já falamos sobre racismo e cotas raciais em 11 de janeiro de 2008, 17 de abril de 2005 e 12 de junho de 2004.