Genial Ferrante

Começando a subir as belas escadarias de madeira do Centro Cultural dos Correios, a ascensorista me chamou: “Não quer vir de elevador? Ou quer fazer exercício?” Um pouco sem graça aceito a oferta, e ela, durante a viagem de dois andares, fala com desenvoltura sobre a história do prédio, num entusiasmo surpreendente – que foi uma escola, que é de 1821, etc, etc. Na descida, me olhou de cima a baixo e elogiou sem nenhum pudor: “Você é bem estilosa, gostei. Muito bem!” E ainda fez nova propaganda do Centro: “Já viu a [peça] Chica da Silva?” Saí pensando que talvez ela devesse ficar na recepção, recebendo os visitantes, e não ali dentro, naquela viagem curta em que mal consegue contar tudo o que sabe sobre o local. Será que a peguei bem-humorada, apenas, ou há ali um talento subaproveitado? Simpatia, habilidade e conhecimento sobre o local de trabalho além do necessário para a função. Tivesse tido oportunidade – que eu estou levianamente deduzindo que faltou –, estaria ela conduzindo um elevador, apenas?

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a_amiga_genial__-_ferrante_2015_okQuando estou vendo muitos episódios seguidos de uma série, ou quando estou lendo um livro marcante, eu mentalmente mimetizo o narrador ou algum personagem. Fico sob a influência daquele estilo, daquele modo de estar no mundo. Por alguns dias ou semanas eu penso a partir daquela perspectiva, ou imagino como o autor (ou personagem) pensaria sobre. Agora estou under influence de Elena Ferrante, minha quase xará (e também das Gilmore Girls, mas esse é outro post). Acabei de ler o primeiro livro da tetralogia e me sinto imersa no universo desse livro incrivelmente bem escrito, que vai mostrando sua qualidade aos poucos e no final te torna refém; você pensa, aliviada: “Ufa, ainda bem que tem mais três!”. Para mim está tendo um efeito quase terapêutico (qual bom livro não tem?): voltei a fatos e pessoas da minha vida que pensei esquecidos. Mas também entrei em contato com emoções e sensações que talvez não quisesse lembrar. Ferrante, além de observadora sagaz, encontra quase sempre le mot juste, descrevendo com clareza o que vivenciamos com imprecisão. E realiza, com muita perspicácia, esse truque de prestidigitação literária, que consiste em: contar uma história que parece muito distante de você – duas meninas beirando a miséria na Itália do pós-guerra – e de repente, tá-rá! É sobre você. E sobre suas escolhas, sombras, sentimentos inconfessos, desejos sufocados, aquela parte com a qual a gente não gosta de lidar nem com luvas: mesquinhez, vergonha, inveja, derrota, maldade, fraqueza. E o mais alarmante: o livro mostra como essa matéria também constitui nossa relação com aqueles que a gente ama e quer bem, não só com rivais ou vilões de ocasião. E ainda constata que sentimentos ruins ou pouco nobres podem impulsionar conquistas. Portanto, em “A amiga genial” aquela sensação agradável de se reconhecer no que o outro escreve vem misturada com um desconforto irreprimível em muitos momentos; pode ser assustador. Ou revelador. Ou ambos.

Pode ser também que eu esteja projetando demais, admito. Li algumas resenhas “isentonas”, sempre observando o outro: elas, as meninas; a Nápoles e seus pobres, os anos 1950, tudo lááá longe. Para mim tudo aquilo foi ficando cada vez mais familiar com o passar das páginas; mesmo a violência entre pais e filhos, que não vivi, nunca esteve fora do meu radar (talvez apenas duas ruas ou casas depois). Quase todas as matérias e resenhas sobre o livro, assim como a orelha e a contracapa, repetem adjetivos como brutal e violento para descrever a história ou o estilo de Elena Ferrante. Mas talvez violento mesmo seja o choque ao se reconhecer tanto numa história tão íntima e singular.

“A amiga genial” também é sobre gênero, classes sociais e os esforços, mais ou menos desesperados, para achar uma saída da pobreza; é sobre caminhos, tropeços e atalhos para fugir do que parece inexorável. Como escapar de condições estabelecidas muito antes de você e que parecem fadadas a permanecer, no matter what. Condições, claro, mais dramáticas para as mulheres. Não consigo evitar a frustração ao pensar em gerações de mulheres talentosas, inteligentes, criativas que foram perdidas pelo atraso do mundo, calibrado pelo machismo castrador, inseguro e burro. E em tantas outras que até hoje ficam pelo caminho, em postos aquém de sua capacidade, mesmo prenhes de potencial. Under influence, eu avisei.

Helê

17 Respostas

  1. A newsletter veio em ótima hora porque estou quase terminando de ler “A Amiga Genial”. Comprei faz um tempo, assim que terminei de ler “Dias de abandono”. Cheguei a começar mas algum outro livro me fisgou na época.
    E, há alguns dias, senti que era hora de retomar. Estou totalmente mergulhada. Reconheço a minha infância em alguns sentimentos, reconheço as histórias da infância da minha mãe (num bairro pobre de Manaus que parece, em alguns momentos, estranhamente similar à Napoles do livro). Enfim, já estou a caminho de comprar o segundo o livro e adorei ler seu texto justo hoje.
    Beijos

    Ah, Rê, que bom que chegou pra você na hora certa! Eu tô querendo reler com calma. A partir de certo ponto deixei de trotar e passei a correr na leitura, querendo saber o que aconteceria.
    E sim, é muito surpreendente como essa pessoa tão distante pode falar de nós com tamanha intimidade…
    Beijoca,
    Helê

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  2. Mandei o link do blog para uma amiga ler seu post sobre a serie napolitana. Nada como uma pessoa genial para falar de outra. bjo

    Ô, Kathia, muito obrigada pelas palavras generosas!
    Beijo grande pra você.
    Helê

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  3. […] por mais tempo que o esperado (a série Downton Abbey, a canção Elephant Gun, os livros da Ferrante). Na rotação acelerada dos dias que correm minha timeline já gritou “Next!” e nem fala mais […]

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  4. Eu fiquei exatamente assim quando li o primeiro livro e ainda pior ao ler o segundo! Eu cara casar e morar pra sempre na escrita da Ferrante.

    Hahaha, Mariana, adoro esses arrebatamentos. E a ideia de morar numa escrita soa tão poético! Ainda não comecei o segundo, vamos ver se também vou querer fixar residência ;-) .
    Obrigada pela visita e pelo comentário. Volte sempre – a casa é nossa.
    Aquele Abraço,
    Helê

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  5. Uau, Helê, cheguei agora e essa caixa de comentários tá o máximo. Eu me identifiquei demais com o livro todo. A gente é tudo muito Lenu – quando identificaremos nossa parte Lila? – mas, que estou escrevendo eu? Depois de Elena, Helena, Tina e Mary W?
    Isso aqui (depois de toda maturação) traduz muito do que senti: “A amiga genial” também é sobre gênero, classes sociais e os esforços, mais ou menos desesperados, para achar uma saída da pobreza; é sobre caminhos, tropeços e atalhos para fugir do que parece inexorável. Como escapar de condições estabelecidas muito antes de você e que parecem fadadas a permanecer, no matter what?”
    Genial, amiga, você é genial.

    Ah, querida, estava esperando você por aqui porque, né? Você me levou à Nápoles, você requisitou a conversão do meu post de mental para digital, tinha que vir aqui ver no que deu, hahaha! E vieram várias amigas e amigos, queria poder pedir umas pizzas pra gente ficar aqui papeando. Aproveito para dizer algo que faltou: eu adoro essa capa!
    E adoro você, of claro. ;-)
    Beijoca,
    Helê

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  6. ….

    (meu comentario tem spoiler)

    Voce nao sente que aquela Italia de la ta quase do mesmo jeito para as mulheres? Foi o que eu senti. O machismo — a figura da mae na vida de homens maduros — Ademais, eu me identifiquei muito com aquelas adolescentes. Aqui e ali, eu vivenciei ( como espectadora mais nao imune) a pobreza. Foi o que mais me marcou. Segurar um filho para bater. Mandar os irmaos segurar a irma para bater. Eu vi. Sao as coisas que me assombram ate hoje.

    Eu me identifico com a Lenu. Eu acho que ela fez demais naquele inferno todo.

    Mari, acho que sim, em muitos lugares, infelizmente. Tem uma passagem em que ela fala sobre lugares sem amor (não lembro exatamente), é bem sofrido e é bem isso. Há uma expécie de simbiose entre pobreza e violência – ou seria melhor dizer violências, porque elas são variadas no livro. Estou torcendo fervorosamente por Lenu.
    Obrigada por comentar, querida. Beijo grande.
    Helê

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  7. Eu tenho evitado comentar nos posts que falam do livro(s) porque comentei muito no começo e fiquei me sentindo a chata-que-busca-ser-diferentona. Mas você perguntou, eu vim. E, assim, eu não detestei o livro. Li os dois, vou ler os outros dois. Provavelmente até ler o outro livro dela. Mas não me tocou. Achei bom, apenas. É um texto muito trabalhado e eu sinto esse trabalho, sabe. O bom livro pra mim é aquele cujo trabalho não se nota, só se deduz. Se adivinha pelo prazer que dá. Além disso, preciso me conectar com os personagens. Sentir falta deles como de amigos e familiares. E não deu liga. Mas aprecio o recorte que ela fez.

    Entendo, Lu. Se não tocar, já era, não tem jeito, nem muita explicação, acho eu. É algo que está além ou aquém do estilo, tema, gênero; não criou empatia, não tocou no nervo. O oposto do que aconteceu pra mim. Inclusive esse trabalho do texto que você fala eu só percebi depois, analisando o livro; durante nem botei reparo, só tive os sustos com a precisão dela e o reconhecimento meu ali.
    Obrigada, querida; volte sempre!
    Helê

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  8. Adorei teu post. Concordo muito contigo e acho que essa identificação nossa com a (ou com as) personagem (ns) é fundamental pro livro dar o “click”.
    Eu adoraria ser Lila, mas sou 100% Lenu. E como a Lenu me irrita.
    Estou lendo o segundo livro e revivendo a minha adolescência. Assim que acabar, voltou aqui pra ver se tu já escreveu sobre =)
    Beijoca

    Obrigada, querida.
    Engraçado, eu não me identifiquei necessariamente com uma ou com outra. Talvez porque tenham feito isso por mim: uma amiga muito querida me chamou de Lenu, e a curiosidade sobre o que isso queria dizer foi uma das forças que me levaram ao livro. Em parte porque não consigo ver nada de Lila em mim – como uma boa Lenu, hahahaha! Estou curiosíssima sobre o segundo; darei notícias.
    Obrigada pela visita e pelo comentário. Volte sempre – a casa é nossa.
    Aquele Abraço,
    Helê

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  9. deve-se a sua simpatia e elegância, pq o dia que eu fui ela mal me deu boa tarde.
    agora, estou impactado com o comentário do Pedro. Se bem que os filmes de hollywood mostraram que teve um época que era comum.
    Quanto ao livro, poderia assinar o texto se escrevesse tão bem. E aguardo comentários com as girls.

    Jura, Clau? Então a peguei num bom dia mesmo, tá vendo?
    Alguém já havia chamado minha atenção para isso, os ascensoristas, e tenho quase certeza que foi um estrangeiro. Em Paris praticamente não há porteiros, e só essa ausência me fez pensar na profissão de uma maneira diferente. Também por esses detalhes cotidianos viajar é tão bom, não é mesmo?
    Estou na 3ª temporada de GG, tentando ver tudo até novembro, vamos acompanhar…
    Beijos, dear.
    Helê

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  10. Ainda não li; estou curioso!

    Ah, Álvaro, leia e a gente troca figurinha depois!
    Beijo; obrigada pela visita :) .
    Helê

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  11. Ascensorista. Confesso que foi uma das estranhezas que encontrei na minha primeira viagem ao Brasil, lá por 92. A profissão, aqui, não existe, e não me lembro de ter existido. Confesso que é uma estranheza que me acompanha até hoje, a sobrevivência dessa função, a de apertar botões e anunciar os andares alcançados. Talvez porque nunca conheci nenhum ascensorista com essa desenvoltura, perspicácia e sentido de missão, até. Quem sabe um dia me surpreenda…

    Você ficaria ainda mais surpreso nesse caso, Pedro, são três andares se contarmos o térreo! Eu demorei muito até me dar conta do inusitado do cargo, aqui ainda é comum, embora cada vez menos. Volta e meia esbarra-se com um mais divertido ou sui generis, ou bem carioca (o que às vezes dá no mesmo).
    Mas a Ferrante, afinal, leste? Porque a próxima moça da fila, a Chimamanda, sei que você fez contato e gostou; minha amiga Geide anda íntima dela e querendo me apresentar. Mas já avisei que Nigéria agora só depois de Nápoles. :-)
    Beijos,
    Helê

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    • Ferrante continua esperando melhor oportunidade. Continuo com África colada à pele, pelo que depois de Pepetela, creio que serão as cartas de guerra de António Lobo Antunes a aguçar a saudade. Chimamanda teve papel de relevo na minha aventura por terras de Angola, contando-me de África como só ela sabe, sussurando-me encantos incontáveis. Ainda me acompanha, sim.

      Elena há de esperar, paciente :-) . Você leu “O planato e a estepe”, do Pepetela? Se não, por favor, não perca.
      Beijoca,
      Helê

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      • Anotadíssimo. Dele li apenas “A sul. O sombreiro”, o suficiente para me deixar suspirando, desejando ter subido o Kwanza até Cambambe, de ter conhecido um pouco melhor o Bengo, de ter prestado mais atenção ao Balombo, lá pelo Quicombo, de ter chegado ao Zaire e a M’Banza Congo…

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    • desculpe me meter na conversa. no caso do ccc a ascensorista se justifica por ser um elevador/ascensor muito antigo – se não foi o primeiro, foi um dos primeiros do brasil. A porta ainda é pantográfica – que já é proibida há algum tempo. Então, é melhor ter cuidado. Apesar de serem só 3 andares, há de se contar que poderiam ser 4 no padrão atual, já que o pé direito de cada andar é alto (avalio entorno dos 4 metros).

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  12. Te invejo por estar começando, eu já li os quatro e estou com dificuldade de ler outra coisa. Elas ficam com a gente por muito tempo.

    Que bom, Tina! Mas me fala: cê acha que faz sentido essa minha visão do livro? Como se pode perceber, no fim do texto fiquei achando que era uma leitura pessoal demais. Quero trocar impressões sobre. Mas nunca spoilers (não, eu não entrei no tumbrl que você achou).
    Beijoca,
    Helê

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    • Concordo totalmente, eu me vi em tantas situações, me senti meio Lila aqui, meio Lenù ali, e vamos combinar que Itália pobre é muito parecida com Brasil pobre. Lembrei tanto da minha infância nesse primeiro livro, de personagens parecidos. E mon dieu, como é bem escrito.

      Sim, sim, lembranças titânicas, “miséria, miséria em qualquer canto, riquezas tão diferentes”. Voltei a mentalmente a cenários da infância dos quais nem sabia que me lembraria. Identifiquei até uma Oliviero na minha trajetória, veja você!

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      • Outra coisa: também estou vendo GG. Temos que acabar até novembro!

        Pois é, tô nessa corrida aí. Tô achando que 23 episódios de 50 minutos em cada temporada um pouco demais; acho que acostumei com o padrão mais enxuto do Netflix ou da HBO. Mas tô indo, ainda na 3a temporada.
        Beijoca!
        Helê

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