Portela, 100 anos

Numa mistura muito brasileira e peculiar de carinho e racismo, meu padrinho me chamava de Neguinha da Portela quando eu era criança; somente por isso, durante um tempo eu achei que era portelense. Mas quando meu coração foi consultado, foi difícil negar: diante da Verde & Rosa desfilando Drummond, chorei de emoção, alegria, beleza e pertencimento. Ali eu soube que era mangueirense, ainda que estivesse, fisicamente, mais próxima de Oswaldo Cruz do que da Estação Primeira.

A verdade é que durante muito tempo ambas eram territórios tão poéticos quanto abstratos: só adulta fui pisar em solo sagrado. Mangueira e Portela entraram na minha vida, além das transmissões dos desfiles, trazidas por seus talentosos filhos, filhas e divindades. Foi ouvindo desde cedo Paulinho, Clara, Beth, Cartola, Alcione, Monarco e, mais tarde, Zeca, que aprendi algumas das mais belas canções escritas em português. Foi em rodas de samba improvisadas em Marechal Hermes que me familiarizei com esse repertório de sambas que compõem a riqueza inestimável dessas agremiações.

Demorou, mas depois que descobri o caminho da quadra, não esqueci mais. E ontem, quando a Manu enviou uma foto nossa na Portela, comentando o centenário, começou a rodar um filminho da minha cabeça das muitas vezes em estive lá. Lembrei da minha filha pequena sambando em cima da cadeira, de encontrar meu amigo Wellington e sua distintíssima mãe numa feijoada; de circular nos arredores numa celebração do Trem do Samba; do show do Paulinho da Viola (com a Manu); do primeiro desfile dos Timoneiros – para onde levei os Parasitas Garbosos (quando comecei pedindo a benção ao Seu Monarco e terminei sambando à frente da bateria, sucesso absoluto!).

Portela: um lugar onde sempre fui muito feliz, em que tive grandes encontros, lembranças divertidas, ternas e inesquecíveis – mesmo para quem é apenas ‘simpatizante’ (como disse a imperiana Manu). Terreiro ancestral e encantado, correnteza de beleza, rio que banha o Rio inteiro de poesia e majestade. Meu coração mangueirense sempre se deixará levar quando vir você passar, Portela. Obrigada e parabéns!

Helê

O não-carnaval

Se a guerra for declarada
Em pleno domingo de carnaval
Verás que um filho não foge à luta
Brasil, recruta
O teu pessoal

Se a terra anda ameaçada
De se acabar numa explosão de sal
Se aliste, meu camarada
A gente vai salvar o nosso carnaval

Alguém sugeriu que, já que vai ter guerra mesmo, deviam então liberar o carnaval (foi no tuíter, claro, aquele repositório de sabedoria e bobagens). Desde então eu não tiro da cabeça essa marchinha deliciosa do Chico, na qual a tropa do general da banda dança o samba em Berlim, a melindrosa manda bala e a rajada é de tamborim.

Caminhando para o terceiro ano de pandemia temos novamente o carnaval cancelado – mas se pagar, pode. Suspensos o desfile das escolas e o esparramar dos blocos, multiplicam-se programações pagas pela cidade, porque o coranavírus, como se sabe, só funciona em eventos gratuitos. Surgem também, aqui e ali, uns subversivos que insistem em ir às ruas, e assim o carnaval popular carioca entra na clandestinidade – algo que eu nunca pensei que veria.

Mas o Francis Hime, parceiro de Chico, perguntou há tempo atrás, numa canção repleta de absurdos, “e se o carnaval cair em abril?” , e é para este mês que foi transferido o desfile na Sapucaí. E não podemos esquecer que o Botafogo foi campeão (da segunda divisão, mas o Francis não especificou). Então eu já não duvido de mais nada, e torço pro meu amor gostar, então, de mim.

Não consigo evitar a melancolia desses dias, um banzo orgânico e incontornável. Não julgo quem vai pra folia, pagando ou escondido; condeno o poder público, incapaz de exercer a autoridade concedida pela população para protegê-la. Para mim não funciona esse carnaval meia boca, fantasia é muito diferente de disfarce. Eu quero ver cada paralelepípedo dessa cidade se arrepiar, quero botar o bloco na rua, festejar o teu sofrer, o teu penar, ser rainha no meio de uma gente tão modesta. Na rua e sem medo.

Pretendo encontrar uns poucos amigos, tomar algumas cervejas e dar um grito de Carnaval (só um, pra não espantar a clientela do bar). Vou aproveitar para discuitr com outro foliões desterrados nomes de não-blocos, como Náufragos da Alegria, Se melhorar eu volto, Abstêmios da Folia, Órfãos de Momo, Me beija que eu tô vacinada, Sambistas da Saudade. Uma brincadeira melancólica, mas é o que temos para hoje.

Sigo torcendo para que em 2023 a gente volte pra rua com alegria e fervor. Até lá, vou continuar me guardando pra quando o carnaval chegar.

Helê

Vou beijar-te agora

Se você escreve publicamente, digamos, para um blogue, saiba que tudo que você disser poderá ser usado… a seu favor (pelo menos aqui, nesse nesse boteco família que eu e mi sócia fundamos e mantemos, servindo bem para servir sempre. ;-) ).

Nesta semana, G. me lembrou que estava chegando a época do ano em que a alegria é a regra e revogam-se todas as disposições em contrário, uma lei que eu mesma escrevi aqui há alguns carnavais atrás. Confesso que não lembrava; vivemos tempos difíceis e dias de incerteza e angústia.

Mas os amigos/leitores estão aí para nos lembrar do que escrevemos e no que acreditamos: na alegria, no carnaval, na amizade e que vai passar. Como tudo, como passa o bloco pela rua transformando estranho em amigo, solidão em companhia, realidade em fantasia. Então dá licença que eu vou ganhar a rua, abraçar o carnaval e esperar que ele me beije de volta.

Sem esquecer o conselho de Elke Maravilha: “Não tenha juízo e não se comporte, mas se cuide!”

Bom carnaval pra geral!

Helê

Um retrato do Brasil

Severino bordando, na porta de sua casa, a gola de caboclo que ele vai usar no Carnaval. Tracunhaém, mata norte de Pernambuco.
Do twitter da Fabiana Moraes

Reza a lenda (urbana) que João Gilberto teria dito, ao ver uma mulher negra descendo o morro, “Olha o Brasil descendo a ladeira!”. A partir dessa “exclamação poética”, Moares Moreira escreveu sua conhecida canção. Pois eu tive reação semelhante ao ver essa foto hoje: de estar vendo o Brasil – ao menos aquele que me interessa, instiga e inspira. Um ao qual eu pertenço e em que me reconheço: tudo nessa foto soa familiar, embora eu não nunca estado em Tracunhaém e tão pouco tenha visto um Caboclo de Lança ao vivo. Não queria morar nessa foto: sinto que, de algum modo, eu vivo ali. 

Helê

Diálogos carnavalescos

– Vou mais tarde hoje, tô cansada. Ontem fui ao “Desculpe o transtorno”, ao Baile do André e fiquei na merda.

– Fiquei na merda é um bloco ou foi você?

***

– Que fantasia é essa?

– Eu tô de Dalila

– Ah, do Sansão…

– Não, a da música: “Eu sou Dalila, não vou negar…”

***

– Cara, num é que a Ivete Sangalo pariu no sábado de carnaval?

– E foi pra avenida depois?!

Bom carnaval pra geral!

Helê, of claro

Falta

O Facebook oferece diariamente fatias de memória, em geral saborosas porque lá a gente mostra mais o lado A da vida. Há semanas salpicam confetes e serpentinas na minha timeline, registros passados da ofegante epidemia que há muito me contagia e à qual me entrego com fervor, o carnaval. Também tenho sido lembrada de textos que escrevi sobre esse momento, sempre encantado para mim, ora sobre a expectativa e ansiedade de aguardá-lo; ora sobre o deleite e o banzo de tê-lo vivido plena e cariocamente.

Mas não sei se o FB terá algo a mostrar para mim nas próximas edições do túnel do tempo, porque neste ano a centelha ainda não acendeu. Pode ser que ainda aconteça – ano passado eu saí da apatia para a barca de Paquetá atrás do Pérola da Guanabara, me lembra D. E eu tenho um nome a lazer, como se sabe. Mas aquele desejo genuíno e indomável encontrar os amigos, sair à rua e brincar, rir dos outros, do improviso, do imprevisto, da vida, em resumo, não apareceu.

O que falta? Tenho uma forte suspeita relacionada um ingrediente fundamental. As do passado ou não cabem ou estão muito gastas; faltam recursos – financeiros, criativos – para novas. Então acho que isso explica a razão do meu desânimo para o carnaval este ano: estou sem fantasia.

Pun intented.

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Helê

Roteiro para brincar o carnaval

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Tenho um nome a lazer, como já disse aqui algumas vezes. Uma reputação conquistada depois de quilômetros de serpentina, nuvens de purpurina, confetes grudados na alma até hoje, desfiles sob o sol inclemente e debaixo de chuvas desnecessárias. Porres e perrengues igualmente homéricos, histórias impagáveis, flertes impegáveis e desfiles memoráveis. Uma folha corrida carnavalesca que inclui a fundação de um bloco* e um vasto acervo de acessórios, memórias e alegrias onde as datas se confundem, mas nada se perde e tudo transborda.

Apesar ou por tudo isso, não sei fornecer roteiros, simplesmente porque não há um mapa secreto com um xis certeiro no carnaval bem-sucedido. Não para esta festa de desacertos perfeitos, inversões e reversões, libertina e insolente por natureza, mas que beleza. No reinado do deboche e do improviso, minhas poucas certezas sambam ao som do primeiro batuque.  O bloco incrível do ano passado pode lotar demais esse ano; aquela fantasia ótima pode não caber; e se o seu parça de folia de repente virou monge? Fora que o nem sei de que lado você samba, vai que é diferente do meu?

12662556_10153883761903351_3572363805172689583_nQuem busca a boa não teme a roubada, então só nos cabe saudar Momo, bater cabeça e pedir passagem, vestir o melhor sorriso e ver aonde nossa fantasia vai nos levar. Encontre com amigos bacanas e bacantes, que carnaval se conjuga no plural e em todos os tempos do verbo brincar. Ouça o batuque do coração e sinta o pulsar do bloco que passa: se o corpo mover, vai que é tua, mesmo se te faltar a graça da passista ou o garbo do mestre-sala. A ordem do rei ordem é brincar quatro dias sem parar – principalmente de ser feliz .

Depois, mesmo se não for assim uau, basta escolher bem as palavras e contar bem contadinho. Vão achar que você sabe tudo de carnaval e até te pedir um roteiro no ano que vem. ;-)

Evoé, Momo! Bom Carnaval pra geral.

Helê

 

*Para quem  não conhece, veja aqui a ata de fundação do Me Chama que Eu Vou, que vai completar sete anos e conta este ano com reforço importado da terra da Rainha.

**Na foto, eu de porta-estandarte no Escravos da Mauá, desfile deste ano. Pinto no lixo define.

Carnavalesco

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(Do tumbrl Vida Baiana)

Da série “Corações”

Bom carnaval – divirtam-se!

Evoé Momo!

Helê

Pastilhas Garota* e confetes de sabedoria

hortelaFoi mais um carnaval memorável este que se encerrou havia terminado com o  Último Gole, um bloco de excelentes músicos e refinado repertório que se apresenta na Lagoa. Coerente com um carnaval de blocos poucos e bons.

*

Quando pensei que tinha acabado rolou uma espécie de repescagem e lá foi o Me Chama para o desfile das Campeãs no sábado. Encaramos a chuva com fleuma britânica e o open bar com know how carioca. Vou te contar: eu não tô acostumada com mordomia, mas aprendo rápido, viu?

*

“Periguete não sente frio, folião não sente calor”.  Gobbi, N.

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Não parasitei com o Garbosos, desencontrei de meu parceiro mais fiel, Indiana. Em compensação, brinquei o carnaval inteiro com a pessoa que mais se assemelha a mim na maneira de ver, sorver e sentir o carnaval, que é a Manu, a musa do Me Chama que Eu Vou. Fomos muito felizes.

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Você sabe que é um corredor quando… vai comprar pão em pleno carnaval de manhã cedo, olha a Lagoa e pensa: “Até que dava pra dar uma corridinha!”.

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“Cuíca de bêbado não tem dono”. Troina, M.

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No dia da padaria, acordei com a cabela revolts. Não tinha elástico, boné ou lenço. Considerei seriamente ir comprar pão de peruca. Mas não sabia de botava a loira, a ruiva ou a black. Sorte que apareceu um frufru.

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“Isso mesmo, quem ama cuida!”, disse a garota apoiando a outra, que abanava o  músico gato no bloco.

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Quando vejo na rua, no restaurante, no ônibus, uma pessoa totalmente à paisana durante o carnaval, sem nem uma estrelinha, acho estranhíssimo, tenho que me controlar pra não perguntar ‘Tá tudo bem, precisa de alguma coisa, quer uma purpurina, fio?”

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“Mermão, em fim de festa guardanapo é bolo!” Anônimo, no fim do bloco “Volta, Alice”

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Carnaval é: tirar a roupa pra tomar banho, encher o banheiro de confete, purpurina e cair quinze reau do sutiã.

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Existe carnaval após o casamento. E existe casamento após o carnaval!” Bacelar, A.

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Quarta-feira de cinzas passou em 30 minutos, já a quinta durou 48 horas. Lamento informar, mas esta semana vai durar 15 dias.

carnaval 2014

Helê

*Porque Drops, só da Fal.

Evoé!

Não se deixem enganar por calendários, convenções, autoridades (argh): o carnaval já começou. Apesar da insensibilidade dos clientes que marcam reuniões, da inocência de professores que esperam atenção, da frieza de chefes que mantêm expedientes, da rigidez de cônjuges que pleiteiam exclusividade, o entrudo (uia!) já se instalou no coração dos homens e mulheres de muito boa vontade e alegria ainda maior. Desfraldado o Estandarte do Sanatório Geral. Então, por favor, não me venham com realidade, seriedades, gravidades. Como diz Juan Luiz Guerra na canção que eu adoro, “ya no me importa si hay luz en el barrio o aumentará la inflación”. Não esperem minha adesão a nada que não envolva samba, fantasia, gargalhadas y confetes. Enquanto os homens exercem seus podres poderes, vou buscar leveza e graça porque meu coração já se agita e palpita mais ligeiro. Vou ali brincar o carnaval com a minha turma – e modéstia parte, “nossa gente é quem bem diz é quem mais dança”. Bom carnaval pra geral!

Imagem*

Helê – quem mais? ;-)

*Essa é uma gif animada, ou deveria ser